Bem, ainda sou gente ... Nas próximas semanas estarei de férias, distante do computador, da teologia, das ciências das religiões ...
Fica meu desejo de que cada um e cada uma de vocês sempre se renove, pois novo não é o ano que entra, novos somos nós quando nos renovamos e nos deixamos renovar por Deus, que faz novas todas as coisas.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Mestrado Profissional em Ciências das Religiões
Não gosto de fazer propaganda, mas este é um caso especial.
A Faculdade Unida teve aprovado pela CAPES o seu Projeto de Mestrado Profissional em Ciências das Religiões. É o primeiro Mestrado Profissional na área das CdR recomendado pela CAPES. Suas Linhas de Pesquisa são: Religião & Esfera Pública (pesquisas na área do lugar e papel das religiões na vida pública e política do país); e Análise do Discurso religioso(pesquisas na área da interpretação de textos sagrados e análise dos discursos religiosos na mídia).
O Mestrado Profissional tem o mesmo valor do Mestrado Acadêmico, sendo sua especificidade o foco da pesquisa mais voltado para o desenvolvimento técnico e profissional. Não é um curso "mais fácil" do que o Acadêmico, apenas não tem o mesmo enfoque teórico.
A CAPES aprovou 15 vagas semestrais e nosso primeiro Processo Seletivo já está aberto, com exame marcado para dias 19-20 de janeiro de 2011. Para mais informações:
http://www.faculdadeunida.com.br
A Faculdade Unida teve aprovado pela CAPES o seu Projeto de Mestrado Profissional em Ciências das Religiões. É o primeiro Mestrado Profissional na área das CdR recomendado pela CAPES. Suas Linhas de Pesquisa são: Religião & Esfera Pública (pesquisas na área do lugar e papel das religiões na vida pública e política do país); e Análise do Discurso religioso(pesquisas na área da interpretação de textos sagrados e análise dos discursos religiosos na mídia).
O Mestrado Profissional tem o mesmo valor do Mestrado Acadêmico, sendo sua especificidade o foco da pesquisa mais voltado para o desenvolvimento técnico e profissional. Não é um curso "mais fácil" do que o Acadêmico, apenas não tem o mesmo enfoque teórico.
A CAPES aprovou 15 vagas semestrais e nosso primeiro Processo Seletivo já está aberto, com exame marcado para dias 19-20 de janeiro de 2011. Para mais informações:
http://www.faculdadeunida.com.br
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Natal: uma parceria imensurável
Para não dizer que não falei sobre o Natal, uma pequena reflexão, pois com a chegada deste fim de ano, o cansaço já dá o ar de sua des-graça.
Natal, nascimento, natividade. Deus se torna, como nós, um nativo. Nascido entre nós. Nascido sob nós, abaixo de nós, no último degrau da escala de valores do império. Escravo nato, um pouco latino-americano, um pouco africano, um pouco mulher, um pouco imigrante...
Em seu pequenino rosto infantil encontramos todas as faces que choram e clamam. Em seu rosto crispado na cruz ressoam todos os clamores. Em seu pequenino rosto infantil, a alegria de toda a terra. Em seu rosto resplandescente na ressurreição, o júbilo de todas as pessoas que clamaram e choraram: foram ouvidas!
Natal: uma parceria imensurável. Não se trata de Deus chegar perto de nós. Não se trata de abrir as portas para irmos ao Seu encontro. Não se trata de transformar o tempo e o espaço da criação. Trata-se, sim, de Deus se tornar um de nós. Tornar-se nascido. Tornar-se nato. Tornar-se nativo. Tornar-se o que nunca deixou de ser: um de nós. Natal: divinização do humano na humanização do divino.
Não mais dois, apenas um.
Natal, nascimento, natividade. Deus se torna, como nós, um nativo. Nascido entre nós. Nascido sob nós, abaixo de nós, no último degrau da escala de valores do império. Escravo nato, um pouco latino-americano, um pouco africano, um pouco mulher, um pouco imigrante...
Em seu pequenino rosto infantil encontramos todas as faces que choram e clamam. Em seu rosto crispado na cruz ressoam todos os clamores. Em seu pequenino rosto infantil, a alegria de toda a terra. Em seu rosto resplandescente na ressurreição, o júbilo de todas as pessoas que clamaram e choraram: foram ouvidas!
Natal: uma parceria imensurável. Não se trata de Deus chegar perto de nós. Não se trata de abrir as portas para irmos ao Seu encontro. Não se trata de transformar o tempo e o espaço da criação. Trata-se, sim, de Deus se tornar um de nós. Tornar-se nascido. Tornar-se nato. Tornar-se nativo. Tornar-se o que nunca deixou de ser: um de nós. Natal: divinização do humano na humanização do divino.
Não mais dois, apenas um.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
Parceria: Pró-Compaixão/Solidariedade
A ideologia neoliberal é perversa e sem compaixão. Nela só há lugar para as pessoas capazes e competentes, que conseguem cumprir todas as exigências do mercado de trabalho e de consumo. Cada vez mais as empresas exigem maior qualificação para seus trabalhadores, e cada vez mais as máquinas substituem as pessoas no desempenho de funções e realização de serviços – e com isso aumenta o desemprego, a economia informal e a marginalidade. A sociedade atual, dominada pelo “deus Capital (Mamon)” gera um sistema social de exclusão, mediante o qual um número cada vez maior de pessoas é excluído do mercado de trabalho, da educação, da saúde, da dignidade, da própria vida!
Em resposta, as pessoas cada vez mais se refugiam nas drogas, na violência, nas religiões sem compromisso, no sexo sem amor, no individualismo, no consumismo; ou simplesmente caem para o submundo da miséria, da fome da marginalidade. É a pessoas assim que se dirige o convite divino à parceria (berith): pessoas sem compaixão, porque acreditam que a competitividade é o melhor meio de eliminar a pobreza e o sofrimento humano; pessoas sem compaixão, porque são vítimas sacrificiais de uma economia perversa, e se tornaram brutalizadas pelo sofrimento; pessoas sem discernimento, porque há tanta informação que não mais se consegue avaliar a veracidade das mesmas; pessoas sem discernimento, porque o consumista é guiado pelo desejo, pura e simplesmente, não pela razão, nem pela inteligência da fé. Para a mensagem da parceria ser viável, porém, as pessoas que nela crêem e por ela vivem, precisam constituir-se como comunidades cheias de compaixão e solidariedade.
Compaixão e solidariedade na comunicação do Evangelho
É necessário compaixão e solidariedade para comunicar o Evangelho da parceria, a fim deste se contrapor à má-notícia de que não há mais futuro viável fora do capitalismo. Ao olhar para as pessoas e para as multidões de seus dias, Jesus as via como “ovelhas sem pastor” e demonstrava-lhes compaixão. A compaixão/solidariedade era o motor de suas ações a favor das pessoas (v. Mt 9,36; 14,14; 15,32; 20,34; Mc 6,34; 8,2; Lc 7,13, etc.). Jesus demonstrava, através de seus atos, a compaixão de Deus pelos seus filhos e filhas escravizados ao pecado; demonstrava a solidariedade do Deus encarnado para com a humanidade pecadora (cf. Hb 2,14-17; 4,15-16). Para comunicar o Evangelho não se pode ver o “outro” como adversário – a evangelização não pode gerar inimigos, mas, sim, pessoas reconciliadas com Deus e, consequentemente, com o próximo e com elas mesmas, amigos e amigas de Jesus Cristo (Jo 15,14-15).
Para comunicar o Evangelho é necessário resistir à tendência desumanizadora e brutalizante de nossa sociedade; é preciso resistir à tentação de vivermos apenas em função de nós mesmos e de nossos interesses e desejos. Precisamos de solidariedade, compaixão: sentir o sofrimento do outro, como o nosso próprio sofrimento – sensibilidade, empatia. Se somos amigos e amigas de Cristo, fazemos o que Ele manda. E o que Ele manda? “Eu vos escolhi para irdes produzir frutos e para que o vosso fruto permaneça ... O que eu vos ordeno é que vos ameis uns aos outros” (Jo 15,16-17). A comunidade da parceria existe para viver e comunicar o Evangelho – essa é a grande comissão de Jesus (Mt 28,18-20 e paralelos), e esse é o poder do Espírito (At 1,8) – e se ela não o faz, deixa de ser povo de Deus, e se identifica com o mundo; torna-se sal sem sabor, não prestando para nada. A comunidade parceira espalha a boa notícia de que, com Deus, nós podemos mudar a vida das pessoas!
Compaixão e solidariedade na prática do serviço ao próximo
Assim como Jesus fez acompanhar sua pregação de sinais visíveis do amor de Deus pelos pecadores, também a comunidade compassiva fará sua comunicação da salvação ser acompanhada dos sinais do Reino. Quem ama, é compassivo e solidário com a pessoa toda, não faz divisão entre “alma” e “corpo”, pregando para salvar “a alma” e deixar o “corpo” morrer, ou viver a serviço do Capital. Jesus cuidava das doenças do corpo, das doenças espirituais, dos problemas econômicos e sociais. Paulo, o evangelista aos gentios, recebeu a recomendação de “nos lembrar dos pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2,10). O serviço cristão é a expressão concreta da compaixão evangelizadora da Igreja. Serviço, ou diaconia (transliteração de palavra grega que significa serviço), é o meio pelo qual a comunidade parceira pratica as boas-obras para as quais foi chamada por Deus (Ef 2,10).
Precisamos discernir quais são as boas-obras mais urgentes, ou quais as formas mais importantes de ação diaconal. No âmbito da economia, por exemplo, a esmola já perdeu a sua eficácia (que teve em períodos muito antigos na história econômica da humanidade). O socorro econômico através da esmola é insuficiente para livrar os pobres da miséria. É preciso ações mais eficazes. Por exemplo: projetos sociais de capacitação profissional, projetos sociais de desenvolvimento comunitário; movimentos sociais de luta contra o desemprego, contra a fome; movimentos políticos pela adoção de mecanismos de defesa econômica dos cidadãos, garantidos pelo Estado – por exemplo: renda mínima, salário educação, etc. No âmbito da saúde, é preciso também atuar através de projetos de desenvolvimento (ambulatórios, clínicas voluntárias, etc.), e de movimentos sociais e políticos (campanhas contra certos tipos de câncer, instituições especializadas no atendimento a certos tipos de doenças e deficiências, etc.; movimentos políticos que visem forçar o Estado a cumprir as metas de saúde pública mínimas para garantir a dignidade dos cidadãos).
Em uma palavra, é preciso que a comunidade parceira atue de forma a contribuir para que a cidadania seja uma verdade prática, e não apenas um direito constitucional. Para que a mensagem da parceria seja entendida, é necessário que a comunidade parceira demonstre os sinais do Reino através de sua vida e da vida de seus membros. Em nossa sociedade, na qual a pessoa só é vista como consumidora, ou como produtora de bens (ou, então, é tornada invisível), precisamos ajudar a desenvolver a cidadania das pessoas. Como cidadãos do Reino do Deus parceiro, somos chamados a lutar para sermos cidadãs e cidadãos de um país justo e livre e para demonstrar solidariedade plena para com os não-cidadãos! Para fazer isso, o Espírito que ungiu Jesus, também pode nos ungir (cf. Lc 4,18-21; 7,18-23). Praticando a cidadania, motivada pela parceria divina, a comunidade da fé pode se tornar parceira de quem, no mundo atual, precisa da emancipação e liberdade que o sistema capitalista é incapaz de oferecer.
Em resposta, as pessoas cada vez mais se refugiam nas drogas, na violência, nas religiões sem compromisso, no sexo sem amor, no individualismo, no consumismo; ou simplesmente caem para o submundo da miséria, da fome da marginalidade. É a pessoas assim que se dirige o convite divino à parceria (berith): pessoas sem compaixão, porque acreditam que a competitividade é o melhor meio de eliminar a pobreza e o sofrimento humano; pessoas sem compaixão, porque são vítimas sacrificiais de uma economia perversa, e se tornaram brutalizadas pelo sofrimento; pessoas sem discernimento, porque há tanta informação que não mais se consegue avaliar a veracidade das mesmas; pessoas sem discernimento, porque o consumista é guiado pelo desejo, pura e simplesmente, não pela razão, nem pela inteligência da fé. Para a mensagem da parceria ser viável, porém, as pessoas que nela crêem e por ela vivem, precisam constituir-se como comunidades cheias de compaixão e solidariedade.
Compaixão e solidariedade na comunicação do Evangelho
É necessário compaixão e solidariedade para comunicar o Evangelho da parceria, a fim deste se contrapor à má-notícia de que não há mais futuro viável fora do capitalismo. Ao olhar para as pessoas e para as multidões de seus dias, Jesus as via como “ovelhas sem pastor” e demonstrava-lhes compaixão. A compaixão/solidariedade era o motor de suas ações a favor das pessoas (v. Mt 9,36; 14,14; 15,32; 20,34; Mc 6,34; 8,2; Lc 7,13, etc.). Jesus demonstrava, através de seus atos, a compaixão de Deus pelos seus filhos e filhas escravizados ao pecado; demonstrava a solidariedade do Deus encarnado para com a humanidade pecadora (cf. Hb 2,14-17; 4,15-16). Para comunicar o Evangelho não se pode ver o “outro” como adversário – a evangelização não pode gerar inimigos, mas, sim, pessoas reconciliadas com Deus e, consequentemente, com o próximo e com elas mesmas, amigos e amigas de Jesus Cristo (Jo 15,14-15).
Para comunicar o Evangelho é necessário resistir à tendência desumanizadora e brutalizante de nossa sociedade; é preciso resistir à tentação de vivermos apenas em função de nós mesmos e de nossos interesses e desejos. Precisamos de solidariedade, compaixão: sentir o sofrimento do outro, como o nosso próprio sofrimento – sensibilidade, empatia. Se somos amigos e amigas de Cristo, fazemos o que Ele manda. E o que Ele manda? “Eu vos escolhi para irdes produzir frutos e para que o vosso fruto permaneça ... O que eu vos ordeno é que vos ameis uns aos outros” (Jo 15,16-17). A comunidade da parceria existe para viver e comunicar o Evangelho – essa é a grande comissão de Jesus (Mt 28,18-20 e paralelos), e esse é o poder do Espírito (At 1,8) – e se ela não o faz, deixa de ser povo de Deus, e se identifica com o mundo; torna-se sal sem sabor, não prestando para nada. A comunidade parceira espalha a boa notícia de que, com Deus, nós podemos mudar a vida das pessoas!
Compaixão e solidariedade na prática do serviço ao próximo
Assim como Jesus fez acompanhar sua pregação de sinais visíveis do amor de Deus pelos pecadores, também a comunidade compassiva fará sua comunicação da salvação ser acompanhada dos sinais do Reino. Quem ama, é compassivo e solidário com a pessoa toda, não faz divisão entre “alma” e “corpo”, pregando para salvar “a alma” e deixar o “corpo” morrer, ou viver a serviço do Capital. Jesus cuidava das doenças do corpo, das doenças espirituais, dos problemas econômicos e sociais. Paulo, o evangelista aos gentios, recebeu a recomendação de “nos lembrar dos pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2,10). O serviço cristão é a expressão concreta da compaixão evangelizadora da Igreja. Serviço, ou diaconia (transliteração de palavra grega que significa serviço), é o meio pelo qual a comunidade parceira pratica as boas-obras para as quais foi chamada por Deus (Ef 2,10).
Precisamos discernir quais são as boas-obras mais urgentes, ou quais as formas mais importantes de ação diaconal. No âmbito da economia, por exemplo, a esmola já perdeu a sua eficácia (que teve em períodos muito antigos na história econômica da humanidade). O socorro econômico através da esmola é insuficiente para livrar os pobres da miséria. É preciso ações mais eficazes. Por exemplo: projetos sociais de capacitação profissional, projetos sociais de desenvolvimento comunitário; movimentos sociais de luta contra o desemprego, contra a fome; movimentos políticos pela adoção de mecanismos de defesa econômica dos cidadãos, garantidos pelo Estado – por exemplo: renda mínima, salário educação, etc. No âmbito da saúde, é preciso também atuar através de projetos de desenvolvimento (ambulatórios, clínicas voluntárias, etc.), e de movimentos sociais e políticos (campanhas contra certos tipos de câncer, instituições especializadas no atendimento a certos tipos de doenças e deficiências, etc.; movimentos políticos que visem forçar o Estado a cumprir as metas de saúde pública mínimas para garantir a dignidade dos cidadãos).
Em uma palavra, é preciso que a comunidade parceira atue de forma a contribuir para que a cidadania seja uma verdade prática, e não apenas um direito constitucional. Para que a mensagem da parceria seja entendida, é necessário que a comunidade parceira demonstre os sinais do Reino através de sua vida e da vida de seus membros. Em nossa sociedade, na qual a pessoa só é vista como consumidora, ou como produtora de bens (ou, então, é tornada invisível), precisamos ajudar a desenvolver a cidadania das pessoas. Como cidadãos do Reino do Deus parceiro, somos chamados a lutar para sermos cidadãs e cidadãos de um país justo e livre e para demonstrar solidariedade plena para com os não-cidadãos! Para fazer isso, o Espírito que ungiu Jesus, também pode nos ungir (cf. Lc 4,18-21; 7,18-23). Praticando a cidadania, motivada pela parceria divina, a comunidade da fé pode se tornar parceira de quem, no mundo atual, precisa da emancipação e liberdade que o sistema capitalista é incapaz de oferecer.
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Parceria: Pró-Equidade
Voltemos à reflexão sobre a berith na Escritura judaico-cristã. Vitalidade, Liberdade, Inclusividade – essas características da parceria divina foram brevemente discutidas em momentos anteriores. Hoje nosso foco recai sobre a quarta característica da parceria: a equidade. Opto pelo termo equidade ao invés de igualdade, porque o primeiro permite uma descrição mais adequada, na medida em que o seu uso corrente na língua não se confunde com a ausência de diferenças ou desigualdades. Equidade significa, basicamente, tratamento igualmente adequado em situações desiguais, a imparcialidade no trato, o reconhecimento dos direitos de cada pessoa independentemente de mérito particular.
Na Torá judaica, o livro do Deuteronômio, em uma seção que vai de 14:22 a 15:23, tematiza a reestruturação da sociedade com vistas à equidade. O texto bíblico pressupõe que, ao longo da vida, as desigualdades surgem – seja por causas naturais (em uma economia agrícola pré-moderna, qualquer desarranjo das condições naturais poderia tornar necessitada uma família), ou por causas humanamente impostas (tributação, cobrança de empréstimos, etc.). Cinco cláusulas ético-legislativas visam a recomposição da equidade.
A primeira delas é a “lei do dízimo” (14:22-29), dividida em duas partes: o dízimo anual (22-27) e o dízimo trienal (28-29). O dízimo anual deveria ser levado ao lugar de culto e consumido em uma grande festa, pelos ofertantes, suas famílias, seus empregados, servos e por todas as pessoas necessitadas. Já o dízimo trienal deveria ser recolhido e estocado para servir às necessidades de “órfãos, viúvas, imigrantes e levitas (sacerdotes)”, grupos de pessoas que não possuíam terras e, assim, não poderiam se sustentar. Com esta formulação, a lei deuteronômica modifica a função do dízimo nas leis sacerdotais e monárquicas – nas quais o dízimo era uma espécie de imposto estatal ou religioso – gerando desigualdade, na medida em que privava o produtor e sua comunidade de parte do fruto do seu trabalho.
A segunda norma (15:1-6), conhecida como ano “sabático”, ou “da remissão”, é uma reformulação de antiga norma pré-monárquica, que determinava o descanso da terra agrícola a cada sete anos. Na forma deuteronômica, a lei demanda o perdão de todas as dívidas de judeus no sétimo ano do ciclo sabático (tornando, assim, compulsória e permanente uma regra que reis poderiam utilizar a seu arbítrio). Trata-se do perdão de dívidas contraídas para sustento da família e não de dívidas para consumo de supérfluos, investimento ou similar (não era uma economia monetária nem capitalista). O texto afirma que o perdão deve ser proclamado em relação às dívidas do “próximo” ou do “irmão”, de modo que o devedor e sua família pudessem reorganizar-se e se restabelecer em sua própria terra.
A terceira norma é a mais interessante (7-11), pois tematiza o empréstimo no sexto ano do ciclo sabático. Para um credor, emprestar no sexto ano do ciclo sabático praticamente equivaleria a dar o dinheiro ou o produto, pois com a chegada do sétimo ano a dívida teria de ser perdoada. Por isso, a norma enfatiza as paixões do possível credor: “não endurecerás teu coração, nem fecharás a tua mão ... não seja maligno teu olho ... não seja maligno teu coração ... generosamente darás”. A norma coloca o ser humano acima da economia, acima da relação comercial, acima da dívida financeira.
A quarta norma (12-18) tematiza a libertação dos escravos – escravizados especialmente em função de dívidas contraídas e não pagas. Tal servidão só poderia durar seis anos. No sétimo ano (não do ciclo sabático, mas do período específico de serviço ao credor) o escravo deveria ser libertado e, ao sair da servidão, deveria receber produto suficiente (com liberalidade) para retomar o trabalho agrícola em sua própria terra. Aqui a motivação da norma é econômica: ao trabalhar por seis anos, qualquer dívida outrora contraída já teria sido paga e com sobras! Uma cláusula da norma é intrigante para nós ocidentais modernos: a pessoa poderia escolher não aceitar a libertação e permanecer como escrava da família do credor. Estranho. Mas, de novo, o valor é: a pessoa está acima da economia e das normas legais.
A quinta norma é a mais estranha para nós (19-23), pois trata do sacrifício de primogênitos de animais como expressão de temor e gratidão a Deus. Tais animais seriam consumidos, como os dízimos, em festas religiosas com a participação de toda a família do ofertante. Caso o animal tivesse alguma impureza que o impedisse de ser consagrado na festa religiosa, deveria ser comido na casa da família, em uma festa “sagrada não-litúrgica” (alguns chamariam esta cláusula de “secular”, mas como a motivação é teológica, não acho apropriado tal termo). A motivação, mais uma vez, é a equidade: todas as pessoas poderiam aproveitar a vida reproduzida...
A parceria divina visa a equidade. É claro que hoje em dia as normas deuteronômicas enquanto tais se tornaram pesadamente anacrônicas. O que importa, porém, é o valor subjacente às mesmas: equidade, reestruturação da vida social com vistas a proporcionar boas condições de vida a todos os membros do povo – sem relação com seu possível mérito ou demérito. Trata-se de uma visão político-econômica que, por um lado, está na base da visão moderna da dignidade humana e dos direitos das pessoas; mas, por outro, contesta a visão liberal capitalista dessa dignidade e direitos – centrada em mérito e conquista – e lhe opõe uma descrição dos direitos humanos baseada na simples graça, na dádiva ou, se preferirmos, na necessidade e na igual dignidade de todas as pessoas, independentemente do lugar social que ocupam.
Na Torá judaica, o livro do Deuteronômio, em uma seção que vai de 14:22 a 15:23, tematiza a reestruturação da sociedade com vistas à equidade. O texto bíblico pressupõe que, ao longo da vida, as desigualdades surgem – seja por causas naturais (em uma economia agrícola pré-moderna, qualquer desarranjo das condições naturais poderia tornar necessitada uma família), ou por causas humanamente impostas (tributação, cobrança de empréstimos, etc.). Cinco cláusulas ético-legislativas visam a recomposição da equidade.
A primeira delas é a “lei do dízimo” (14:22-29), dividida em duas partes: o dízimo anual (22-27) e o dízimo trienal (28-29). O dízimo anual deveria ser levado ao lugar de culto e consumido em uma grande festa, pelos ofertantes, suas famílias, seus empregados, servos e por todas as pessoas necessitadas. Já o dízimo trienal deveria ser recolhido e estocado para servir às necessidades de “órfãos, viúvas, imigrantes e levitas (sacerdotes)”, grupos de pessoas que não possuíam terras e, assim, não poderiam se sustentar. Com esta formulação, a lei deuteronômica modifica a função do dízimo nas leis sacerdotais e monárquicas – nas quais o dízimo era uma espécie de imposto estatal ou religioso – gerando desigualdade, na medida em que privava o produtor e sua comunidade de parte do fruto do seu trabalho.
A segunda norma (15:1-6), conhecida como ano “sabático”, ou “da remissão”, é uma reformulação de antiga norma pré-monárquica, que determinava o descanso da terra agrícola a cada sete anos. Na forma deuteronômica, a lei demanda o perdão de todas as dívidas de judeus no sétimo ano do ciclo sabático (tornando, assim, compulsória e permanente uma regra que reis poderiam utilizar a seu arbítrio). Trata-se do perdão de dívidas contraídas para sustento da família e não de dívidas para consumo de supérfluos, investimento ou similar (não era uma economia monetária nem capitalista). O texto afirma que o perdão deve ser proclamado em relação às dívidas do “próximo” ou do “irmão”, de modo que o devedor e sua família pudessem reorganizar-se e se restabelecer em sua própria terra.
A terceira norma é a mais interessante (7-11), pois tematiza o empréstimo no sexto ano do ciclo sabático. Para um credor, emprestar no sexto ano do ciclo sabático praticamente equivaleria a dar o dinheiro ou o produto, pois com a chegada do sétimo ano a dívida teria de ser perdoada. Por isso, a norma enfatiza as paixões do possível credor: “não endurecerás teu coração, nem fecharás a tua mão ... não seja maligno teu olho ... não seja maligno teu coração ... generosamente darás”. A norma coloca o ser humano acima da economia, acima da relação comercial, acima da dívida financeira.
A quarta norma (12-18) tematiza a libertação dos escravos – escravizados especialmente em função de dívidas contraídas e não pagas. Tal servidão só poderia durar seis anos. No sétimo ano (não do ciclo sabático, mas do período específico de serviço ao credor) o escravo deveria ser libertado e, ao sair da servidão, deveria receber produto suficiente (com liberalidade) para retomar o trabalho agrícola em sua própria terra. Aqui a motivação da norma é econômica: ao trabalhar por seis anos, qualquer dívida outrora contraída já teria sido paga e com sobras! Uma cláusula da norma é intrigante para nós ocidentais modernos: a pessoa poderia escolher não aceitar a libertação e permanecer como escrava da família do credor. Estranho. Mas, de novo, o valor é: a pessoa está acima da economia e das normas legais.
A quinta norma é a mais estranha para nós (19-23), pois trata do sacrifício de primogênitos de animais como expressão de temor e gratidão a Deus. Tais animais seriam consumidos, como os dízimos, em festas religiosas com a participação de toda a família do ofertante. Caso o animal tivesse alguma impureza que o impedisse de ser consagrado na festa religiosa, deveria ser comido na casa da família, em uma festa “sagrada não-litúrgica” (alguns chamariam esta cláusula de “secular”, mas como a motivação é teológica, não acho apropriado tal termo). A motivação, mais uma vez, é a equidade: todas as pessoas poderiam aproveitar a vida reproduzida...
A parceria divina visa a equidade. É claro que hoje em dia as normas deuteronômicas enquanto tais se tornaram pesadamente anacrônicas. O que importa, porém, é o valor subjacente às mesmas: equidade, reestruturação da vida social com vistas a proporcionar boas condições de vida a todos os membros do povo – sem relação com seu possível mérito ou demérito. Trata-se de uma visão político-econômica que, por um lado, está na base da visão moderna da dignidade humana e dos direitos das pessoas; mas, por outro, contesta a visão liberal capitalista dessa dignidade e direitos – centrada em mérito e conquista – e lhe opõe uma descrição dos direitos humanos baseada na simples graça, na dádiva ou, se preferirmos, na necessidade e na igual dignidade de todas as pessoas, independentemente do lugar social que ocupam.
sábado, 27 de novembro de 2010
“Guerra” no Rio de Janeiro
Todas as pessoas que acompanham o noticiário sobre os últimos dias de combate entre o Estado e o Crime Organizado no Rio de Janeiro reconhecem a situação de terror, caos e mortandade que se estabeleceu. Situação que os cariocas estão vivenciando, alguns como perpetradores, a maioria como vítimas inocentes de uma crônica situação de injustiça e exclusão social – que tenho comentado, em termos abstratos, neste blog mais de uma vez.
A resposta forte do Estado, polícia, exército, armas, equipamentos de guerra, não resolve a situação de violência. É necessária, um mal necessário, prefiro dizer. Resolve situações imediatas, conquista territórios específicos, delimita os agentes do confronto, demonstra as possibilidades e os limites estratégicos e de poder de fogo das partes envolvidas no conflito. Visa restabelecer a “ordem pública” violada pelo quase-Estado paralelo que o crime organizado tem conseguido criar e manter.
Como resolver, porém, essa crise aparentemente interminável? Insisto: polícia e exército nas ruas não é a solução, assim como não o são mais presídios, celas, tecnologias de vigilância. Males necessários (talvez expressão de desespero e impotência), mas não solução.
Um dos caminhos para a solução: quando o acesso à vida digna e boa mediante as vias “normais e ordeiras” estiver tão disponível e for tão atraente quanto o acesso oferecido pelo crime, cada vez menos pessoas irão buscar no crime o seu projeto de vida. Ora, adolescentes e jovens envolvidos no crime organizado sabem que a vida encurta. Mas lhes parece mais viável viver intensamente uma vida curta, do que sobreviver mal uma vida longa e chata. Quando o acesso “digno” à vida digna for universalizado, menos pessoas irão buscar nas drogas (cigarro, álcool, maconha, crack, etc.) a paz e o reconhecimento que não encontram no seu cotidiano.
Outro caminho, simultâneo: quando formos capazes de modificar o conjunto hierarquizado de valores que legitima a violência sistêmica que gera e mantém pessoas sob o risco permanente da indignidade da vida, menos e menos pessoas optarão pelos caminhos ilegais e criminosos para alcançar o “sonho brasileiro”. Ou seja, quando o “sonho brasileiro” não for mais medido pela capacidade de consumo e pelo volume de dinheiro possuído, mas passar a ser medido pela qualidade da educação, da solidariedade, da cidadania, etc. Quando a auto-imagem e a auto-estima não forem mais construídas a partir da “posse”, mas da “partilha e da comunhão”, ou reconhecimento mútuo, as ofertas do crime não terão atração tão sedutora. Quando a cidadania não for mais obstaculizada pelas injustas gradações e privilégios que ainda são dominantes no Brasil, o “jeitinho” brasileiro não passará pelos caminhos da transgressão impotente.
Duas sugestões apenas. Não a receita mágica, não a panacéia, não o projeto em plenitude. Dois caminhos a serem trilhados perseverantemente, jeitos não-jeitinhos-mas-jeitosos de refazer a nossa história e de fazer valer a máxima "o Rio de Janeiro continua lindo".
Entre as palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhos, encontramos algumas falas que nos encaminham à reflexão transformadora: “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”; “bem-aventuradas as pessoas que têm fome e sede de justiça, serão saciadas”; “bem-aventuradas as pessoas que praticam a paz, verão a Deus”; “não acumulem tesouros na terra,onde a traça e a ferrugem comem e corroem”; “amarás o teu próximo, como a ti mesmo”. Não são pérolas de pensamento positivo. Não são mantras mágicos que repetidos farão do inferno um paraíso. São sínteses de sabedoria que convidam, que exigem reflexão, estudo, discernimento. São sinais que apontam para ações e relações capazes de vencer o mal com o bem. São, para todas e todos nós, con-vocações!
A resposta forte do Estado, polícia, exército, armas, equipamentos de guerra, não resolve a situação de violência. É necessária, um mal necessário, prefiro dizer. Resolve situações imediatas, conquista territórios específicos, delimita os agentes do confronto, demonstra as possibilidades e os limites estratégicos e de poder de fogo das partes envolvidas no conflito. Visa restabelecer a “ordem pública” violada pelo quase-Estado paralelo que o crime organizado tem conseguido criar e manter.
Como resolver, porém, essa crise aparentemente interminável? Insisto: polícia e exército nas ruas não é a solução, assim como não o são mais presídios, celas, tecnologias de vigilância. Males necessários (talvez expressão de desespero e impotência), mas não solução.
Um dos caminhos para a solução: quando o acesso à vida digna e boa mediante as vias “normais e ordeiras” estiver tão disponível e for tão atraente quanto o acesso oferecido pelo crime, cada vez menos pessoas irão buscar no crime o seu projeto de vida. Ora, adolescentes e jovens envolvidos no crime organizado sabem que a vida encurta. Mas lhes parece mais viável viver intensamente uma vida curta, do que sobreviver mal uma vida longa e chata. Quando o acesso “digno” à vida digna for universalizado, menos pessoas irão buscar nas drogas (cigarro, álcool, maconha, crack, etc.) a paz e o reconhecimento que não encontram no seu cotidiano.
Outro caminho, simultâneo: quando formos capazes de modificar o conjunto hierarquizado de valores que legitima a violência sistêmica que gera e mantém pessoas sob o risco permanente da indignidade da vida, menos e menos pessoas optarão pelos caminhos ilegais e criminosos para alcançar o “sonho brasileiro”. Ou seja, quando o “sonho brasileiro” não for mais medido pela capacidade de consumo e pelo volume de dinheiro possuído, mas passar a ser medido pela qualidade da educação, da solidariedade, da cidadania, etc. Quando a auto-imagem e a auto-estima não forem mais construídas a partir da “posse”, mas da “partilha e da comunhão”, ou reconhecimento mútuo, as ofertas do crime não terão atração tão sedutora. Quando a cidadania não for mais obstaculizada pelas injustas gradações e privilégios que ainda são dominantes no Brasil, o “jeitinho” brasileiro não passará pelos caminhos da transgressão impotente.
Duas sugestões apenas. Não a receita mágica, não a panacéia, não o projeto em plenitude. Dois caminhos a serem trilhados perseverantemente, jeitos não-jeitinhos-mas-jeitosos de refazer a nossa história e de fazer valer a máxima "o Rio de Janeiro continua lindo".
Entre as palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhos, encontramos algumas falas que nos encaminham à reflexão transformadora: “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”; “bem-aventuradas as pessoas que têm fome e sede de justiça, serão saciadas”; “bem-aventuradas as pessoas que praticam a paz, verão a Deus”; “não acumulem tesouros na terra,onde a traça e a ferrugem comem e corroem”; “amarás o teu próximo, como a ti mesmo”. Não são pérolas de pensamento positivo. Não são mantras mágicos que repetidos farão do inferno um paraíso. São sínteses de sabedoria que convidam, que exigem reflexão, estudo, discernimento. São sinais que apontam para ações e relações capazes de vencer o mal com o bem. São, para todas e todos nós, con-vocações!
terça-feira, 23 de novembro de 2010
Exclusão: Impedimentos à Parceria Includente
Semana passada apresentei as características básicas da inclusividade como elemento constitutivo da parceria (berith) entre YHWH e sua criação. Hoje quero destacar o que impede a inclusão, assim como, anteriormente, contrapus capitalismo, individualismo consumista e "religião" como obstáculos à vitalidade e à liberdade.
Capitalismo, individualismo consumista e "religião" também são obstáculos à inclusividade da parceria divino-criacional. De que maneira?
Um mecanismo de exclusão é a invisibilização do "outro". Nas sociedades capitalistas, parcela significativa da população é tornada invisível para que a injustiça estruturada-estruturante no/do capitalismo não seja percebida. No Brasil, por exemplo, cerca de um terço da população é constituída por essa gente invisível. Tais pessoas são excluídas do convívio social visível a fim de que não nos vejamos confrontados com o preço pago pela nossa "vida boa". Quem são essas pessoas? Podemos nomeá-las como pobres, miseráveis, vagabundos, bandidos, gentalha, ralé, ou termos assemelhados. São as pessoas que, para a ideologia capitalista, constituem o grupo de fracassados. Pessoas que não "conseguiram" aproveitar as oportunidades de educação, trabalho e ascensão social oferecidas livremente a todas cidadãs e cidadãos dos países democráticos. Gente que não conseguiu atingir o ideal heróico e excludente do "self-made (wo)man".
Gente que não está qualificada para os postos formais do mercado de trabalho "digno" e se vê obrigada a aceitar qualquer trabalho, por mais indigno que seja. Gente que cata os lixos que descartamos; gente que se embebeda com as bebidas que produzimos para o lazer dos bem-sucedidos e para afogar as mágoas dos fracassados; gente que vende o prazer sexual enquanto o corpo ainda consegue atrair compradores (é claro que estou falando do sexo por 10, 20 ou tantos reais); gente que é aprovada sem mérito no sistema escolar público que não consegue lidar com sua própria incapacidade de enfrentar o sistema capitalista e, depois, não será aceita pelo "mercado"; gente que lava e "guarda" os carros que simbolizam a ascensão social e o prestígio do consumo; gente que sobrevive apenas às custas da lenta e progressiva morte advinda das drogas que encobrem o "fracasso"; gente que, enfim, irá encher os bancos das igrejas que oferecem solução mágica para problemas nada mágicos, soluções que nem todos os Harry Potter do mundo da fantasia conseguem conjurar.
Outro mecanismo, indissoluvelmente ligado ao primeiro, é o da culpabilização do "outro". Essa gente excluída pelo sistema capitalista é não só tornada invisível, mas também culpabilizada pela sua própria condição de vítimas de uma injustiça social estruturada e estruturante da vida de seus corpos invisíveis. Já mencionara, e repito: as pessoas invisíveis são descritas como perdedoras, preguiçosas, indolentes, incapazes de aproveitar as oportunidades que o capitalismo e a democracia colocam ao alcance de todas as pessoas (a quem o sistema tem interesse em aproveitar). Gente que não alcançou o mérito necessário para ser enxergada; gente que não se esforçou o bastante; gente que não se sacrificou para alcançar o que "toda pessoa honesta e trabalhadora" alcança: dinheiro suficiente para viver sua vidinha individualista e consumista no sistema capitalista; gente que não teve fé suficiente para sair da própria desgraça e cair nas graças do deus Mamom (dinheiro ou mercado, atualizando um dito atribuído a Jesus no Evangelho de Mateus, no chamado sermão da montanha).
Culpabilização que é especialidade das instituições eclesiásticas cristãs que proliferam em nossa terra brasilis. Há várias maneiras de usar a Bíblia e a tradição cristã para culpabilizar as pessoas já condenadas pelo "mundo". A mais famosa e eficaz dessas maneiras é a perversão do conceito bíblico do pecado. Um conceito que, na Bíblia em geral, funciona principalmente como demarcador da distância ontológica (essencial) entre YHWH e a criação; mas que, em nosso discurso "cristão" é reduzido ao componente ético-moral. Conceito que legitima o círculo vicioso do sistema excludente: "você bebe porque é pecador, é pecador porque bebe" (podemos substituir o verbo beber por qualquer outro dos comportamentos que invisibiliza os excluídos do sistema vigente). Conceito que, ao invés de ressaltar a graça perdoadora de YHWH, caricaturiza o caráter de Deus como o de um rígido Juiz que distribui sentenças condenatórias a quem não pratica as obras necessárias para merecer a graça. E entre tais obras incluo a "fé" tão decantada em nosso discurso protestante, mas que de "fé" não tem quase nada, reduzida a uma obra meritória - posto que, de resposta à graça já outorgada, se torna em condição para recebê-la.
Você acha que estou exagerando? É possível. Mas então olhe para os irmãos e irmãs da igreja, olhe para seus amigos e amigas, olhe para seus e suas colegas de trabalho ou estudo. A gentalha invisível está bem representada nesses espaços sociais "dignos" do mundo capitalista que eu e você frequentamos piedosamente? Ou, quem sabe, em sua igreja, bêbados não são retirados do templo, prostitutas são bem recebidas, pessoas de rua encontram teto para não dormir ao relento, crianças que cheiram cola conseguem encontrar comida e afeto???
Capitalismo, individualismo consumista e "religião" também são obstáculos à inclusividade da parceria divino-criacional. De que maneira?
Um mecanismo de exclusão é a invisibilização do "outro". Nas sociedades capitalistas, parcela significativa da população é tornada invisível para que a injustiça estruturada-estruturante no/do capitalismo não seja percebida. No Brasil, por exemplo, cerca de um terço da população é constituída por essa gente invisível. Tais pessoas são excluídas do convívio social visível a fim de que não nos vejamos confrontados com o preço pago pela nossa "vida boa". Quem são essas pessoas? Podemos nomeá-las como pobres, miseráveis, vagabundos, bandidos, gentalha, ralé, ou termos assemelhados. São as pessoas que, para a ideologia capitalista, constituem o grupo de fracassados. Pessoas que não "conseguiram" aproveitar as oportunidades de educação, trabalho e ascensão social oferecidas livremente a todas cidadãs e cidadãos dos países democráticos. Gente que não conseguiu atingir o ideal heróico e excludente do "self-made (wo)man".
Gente que não está qualificada para os postos formais do mercado de trabalho "digno" e se vê obrigada a aceitar qualquer trabalho, por mais indigno que seja. Gente que cata os lixos que descartamos; gente que se embebeda com as bebidas que produzimos para o lazer dos bem-sucedidos e para afogar as mágoas dos fracassados; gente que vende o prazer sexual enquanto o corpo ainda consegue atrair compradores (é claro que estou falando do sexo por 10, 20 ou tantos reais); gente que é aprovada sem mérito no sistema escolar público que não consegue lidar com sua própria incapacidade de enfrentar o sistema capitalista e, depois, não será aceita pelo "mercado"; gente que lava e "guarda" os carros que simbolizam a ascensão social e o prestígio do consumo; gente que sobrevive apenas às custas da lenta e progressiva morte advinda das drogas que encobrem o "fracasso"; gente que, enfim, irá encher os bancos das igrejas que oferecem solução mágica para problemas nada mágicos, soluções que nem todos os Harry Potter do mundo da fantasia conseguem conjurar.
Outro mecanismo, indissoluvelmente ligado ao primeiro, é o da culpabilização do "outro". Essa gente excluída pelo sistema capitalista é não só tornada invisível, mas também culpabilizada pela sua própria condição de vítimas de uma injustiça social estruturada e estruturante da vida de seus corpos invisíveis. Já mencionara, e repito: as pessoas invisíveis são descritas como perdedoras, preguiçosas, indolentes, incapazes de aproveitar as oportunidades que o capitalismo e a democracia colocam ao alcance de todas as pessoas (a quem o sistema tem interesse em aproveitar). Gente que não alcançou o mérito necessário para ser enxergada; gente que não se esforçou o bastante; gente que não se sacrificou para alcançar o que "toda pessoa honesta e trabalhadora" alcança: dinheiro suficiente para viver sua vidinha individualista e consumista no sistema capitalista; gente que não teve fé suficiente para sair da própria desgraça e cair nas graças do deus Mamom (dinheiro ou mercado, atualizando um dito atribuído a Jesus no Evangelho de Mateus, no chamado sermão da montanha).
Culpabilização que é especialidade das instituições eclesiásticas cristãs que proliferam em nossa terra brasilis. Há várias maneiras de usar a Bíblia e a tradição cristã para culpabilizar as pessoas já condenadas pelo "mundo". A mais famosa e eficaz dessas maneiras é a perversão do conceito bíblico do pecado. Um conceito que, na Bíblia em geral, funciona principalmente como demarcador da distância ontológica (essencial) entre YHWH e a criação; mas que, em nosso discurso "cristão" é reduzido ao componente ético-moral. Conceito que legitima o círculo vicioso do sistema excludente: "você bebe porque é pecador, é pecador porque bebe" (podemos substituir o verbo beber por qualquer outro dos comportamentos que invisibiliza os excluídos do sistema vigente). Conceito que, ao invés de ressaltar a graça perdoadora de YHWH, caricaturiza o caráter de Deus como o de um rígido Juiz que distribui sentenças condenatórias a quem não pratica as obras necessárias para merecer a graça. E entre tais obras incluo a "fé" tão decantada em nosso discurso protestante, mas que de "fé" não tem quase nada, reduzida a uma obra meritória - posto que, de resposta à graça já outorgada, se torna em condição para recebê-la.
Você acha que estou exagerando? É possível. Mas então olhe para os irmãos e irmãs da igreja, olhe para seus amigos e amigas, olhe para seus e suas colegas de trabalho ou estudo. A gentalha invisível está bem representada nesses espaços sociais "dignos" do mundo capitalista que eu e você frequentamos piedosamente? Ou, quem sabe, em sua igreja, bêbados não são retirados do templo, prostitutas são bem recebidas, pessoas de rua encontram teto para não dormir ao relento, crianças que cheiram cola conseguem encontrar comida e afeto???
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Parceria: Pró-Inclusividade
Dando continuidade aos elementos constituintes da teologia da parceria na escritura judaico-cristã. Juntamente com vitalidade e liberdade, a inclusividade é um dos aspectos da parceria entre YHWH e sua criação.
Inclusividade é um termo debatido, polêmico. Talvez seja bom começar pelo que não seria inclusividade na parceria. Não é inclusividade a assimilação do diferente pelo grupo maior ou mais poderoso. Incluir não implica em exigir a aceitação, pelo incluído, da cultura do incluidor. Também não é incorporação - termo mais institucional, que descreve o desaparecimento do incorporado no incorporador - um tipo mais perverso de assimilação. Inclusividade também não é mera aceitação. Aceitar não conduz necessariamente à inclusão, pois é possível aceitar o outro sem que ele/ela faça parte do mesmo projeto de vida - aceitar sem se envolver, sem se comprometer, sem se relacionar. Também não é aceitar em um sentido passivo de não questionar o que a pessoa incluída faz ou pensa, ou tem como projeto de vida. A parceria de YHWH, quando inclui, transforma.
Começando pelo negativo, você mesmo/a pode deduzir o aspecto positivo. Antes, porém, de ir para essa dimensão, um pequeno desvio. O conceito bíblico mais importante, a meu ver, neste momento, para entender a inclusividade é o de pecado. É claro que, neste caso, não podemos pensar no pecado como um termo ético ou moral, mas devemos pensar nele como termo ontológico. Pecado é um modo-de-ser, é uma espécie de natureza, um tipo de DNA da criatura. A escritura judaico-cristã insiste: "todos pecaram". Todos e todas estamos incluídas e incluídos nesta categoria que não permite hierarquias, gradações, privilégios. Todas as pessoas que vivem são pecadoras - finitas, não-plenas, em-processo, em-busca-de, inter-dependentes, mortais. Se todos pecaram, todas as distinções que nós seres humanos inventamos não têm valor algum, pois todas são negações da parceria na medida em que são recusas de aceitar a nossa condição de humanos, apenas ou demasiadamente humanos.
Com esta revisão do conceito de pecado, podemos redescrever a noção de conversão. Conversão é uma reviravolta, uma retomada de posição, parar de acaminhar na direção da morte e começar a caminhar na direção da vida. Para essa retomada, é necessário o arrependimento (que não se trata de remorso ou ato similar), a tomada de consciência da nossa pecaminosidade, da nossa finitude. Sei que é politicamente incorreto falar de pecado, arrependimento, conversão. Incorreto, mas necessário. Foi o pensamento cartesiano, o humanista, o iluminista e seus assemelhados que transformaram o ser humano em super-humano, em ser-em-direção-ao-progresso-para-o-qual-nasceu. Humanos, somos perfeitos, plenos, racionais. Tão racionalmente plenos que, mesmo reconhecendo as atrocidades dos mundos pré-modernos, as repetimos com elevada dose de sutileza e humanismo ilustrado. Não somos como os antigos, que dividiam o mundo entre gregos e bárbaros, com-alma e sem-alma. Hoje sabmeos que todos somos iguais em dignidade - somos diferentes apenas na conta bancária, no status social. Nossos binarismos são racionais, científicos. É desse caminho que precisamos nos arrepender e encetar meia-volta em direção oposta.
Arrependidas e convertidas, as pessoas estão incluídas na parceria de YHWH. Nessa parceria, o projeto de vida transformador, pró-vitalidade e pró-liberdade envolve todas as participantes - inclusivamente, sem gradações, privilégios ou hierarquias. Todos os membros da parceria contribuem criativamente para realizar a própria parceria, para concretizar as suas próprias dimensões. Entrar na parceria não é tão fácil, mas permanecer nele é menos fácil ainda - há que se adentrar em um novo estilo de vida, ainda-em-construção, inacabado, utópico. Inclusividade que não significa uniformidade, comodidade, banalidade. Incluir para transformar sem-violência. Transformação que é auto-transformação-em-parceria. Incluir todas as pessoas que, de direito, são iguais; embora, de fato, diferentes. Diferenças que não excluem, não assimilam, não incorporam. Diferenças que, includentemente, enriquecem.
Inclusividade é um termo debatido, polêmico. Talvez seja bom começar pelo que não seria inclusividade na parceria. Não é inclusividade a assimilação do diferente pelo grupo maior ou mais poderoso. Incluir não implica em exigir a aceitação, pelo incluído, da cultura do incluidor. Também não é incorporação - termo mais institucional, que descreve o desaparecimento do incorporado no incorporador - um tipo mais perverso de assimilação. Inclusividade também não é mera aceitação. Aceitar não conduz necessariamente à inclusão, pois é possível aceitar o outro sem que ele/ela faça parte do mesmo projeto de vida - aceitar sem se envolver, sem se comprometer, sem se relacionar. Também não é aceitar em um sentido passivo de não questionar o que a pessoa incluída faz ou pensa, ou tem como projeto de vida. A parceria de YHWH, quando inclui, transforma.
Começando pelo negativo, você mesmo/a pode deduzir o aspecto positivo. Antes, porém, de ir para essa dimensão, um pequeno desvio. O conceito bíblico mais importante, a meu ver, neste momento, para entender a inclusividade é o de pecado. É claro que, neste caso, não podemos pensar no pecado como um termo ético ou moral, mas devemos pensar nele como termo ontológico. Pecado é um modo-de-ser, é uma espécie de natureza, um tipo de DNA da criatura. A escritura judaico-cristã insiste: "todos pecaram". Todos e todas estamos incluídas e incluídos nesta categoria que não permite hierarquias, gradações, privilégios. Todas as pessoas que vivem são pecadoras - finitas, não-plenas, em-processo, em-busca-de, inter-dependentes, mortais. Se todos pecaram, todas as distinções que nós seres humanos inventamos não têm valor algum, pois todas são negações da parceria na medida em que são recusas de aceitar a nossa condição de humanos, apenas ou demasiadamente humanos.
Com esta revisão do conceito de pecado, podemos redescrever a noção de conversão. Conversão é uma reviravolta, uma retomada de posição, parar de acaminhar na direção da morte e começar a caminhar na direção da vida. Para essa retomada, é necessário o arrependimento (que não se trata de remorso ou ato similar), a tomada de consciência da nossa pecaminosidade, da nossa finitude. Sei que é politicamente incorreto falar de pecado, arrependimento, conversão. Incorreto, mas necessário. Foi o pensamento cartesiano, o humanista, o iluminista e seus assemelhados que transformaram o ser humano em super-humano, em ser-em-direção-ao-progresso-para-o-qual-nasceu. Humanos, somos perfeitos, plenos, racionais. Tão racionalmente plenos que, mesmo reconhecendo as atrocidades dos mundos pré-modernos, as repetimos com elevada dose de sutileza e humanismo ilustrado. Não somos como os antigos, que dividiam o mundo entre gregos e bárbaros, com-alma e sem-alma. Hoje sabmeos que todos somos iguais em dignidade - somos diferentes apenas na conta bancária, no status social. Nossos binarismos são racionais, científicos. É desse caminho que precisamos nos arrepender e encetar meia-volta em direção oposta.
Arrependidas e convertidas, as pessoas estão incluídas na parceria de YHWH. Nessa parceria, o projeto de vida transformador, pró-vitalidade e pró-liberdade envolve todas as participantes - inclusivamente, sem gradações, privilégios ou hierarquias. Todos os membros da parceria contribuem criativamente para realizar a própria parceria, para concretizar as suas próprias dimensões. Entrar na parceria não é tão fácil, mas permanecer nele é menos fácil ainda - há que se adentrar em um novo estilo de vida, ainda-em-construção, inacabado, utópico. Inclusividade que não significa uniformidade, comodidade, banalidade. Incluir para transformar sem-violência. Transformação que é auto-transformação-em-parceria. Incluir todas as pessoas que, de direito, são iguais; embora, de fato, diferentes. Diferenças que não excluem, não assimilam, não incorporam. Diferenças que, includentemente, enriquecem.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Vitalidade e Liberdade - Obstáculos Contemporâneos
Em posts anteriores apresentei a vitalidade e a liberdade como elementos constituintes da parceria entre YHWH e sua criação. Quero destacar, neste, alguns dos obstáculos fundamentais que, na contemporaneidade, se interpõem à vitalidade e à liberdade.
Começando com o mais abstrato: o sistema econômico capitalista. Ficou meio fora de moda criticar o capitalismo de modo radical. Afinal de contas, vivemos na época do pensamento único, do fim das ideologias e das utopias...
Não tenho problema, porém, em estar fora de moda se for necessário. O capitalismo tornou-se um sistema econômico que coloca obstáculos de elevada monta à vitalidade. Apenas exemplos: Posso começar com a crise ambiental que vivemos e que, apesar das grandes reuniões e eventos, ainda não está próxima de ser superada. No final das contas, entre ambiente e lucro, o capitalismo elege o lucro. O capitalismo é gerador de miséria e exclusão, além de manter os trabalhadores dentro de patamares baixos de remuneração - doutra forma a tal de mais-valia (ainda que o conceito mereça revisão) não consegue formar parte do lucro. Ok! Não temos nenhum outro sistema econômico preparado para entrar e substituir o capitalismo. Mas quando o capitalismo iniciou, ele estava na mesma condição em relação ao feudalismo.
Semelhantemente, o capitalismo não é compatível com a liberdade. É moeda corrente nos estudos sociológicos sobre a modernidade - pelo menos entre sociólogos tais como Sousa Santos, José Maurício Domingues, Jessé Souza etc. - que o capitalismo moderno oferece liberdade à troca de mercadorias, mas gera dependência para os trabalhadores e as pessoas que vivem à sua órbita. Em outras palavras, a liberdade formal da cidadania não é acompanhada pela liberdade material da economia. O Estado de bem-estar social não conseguiu superar a dependência, e o atual modelo neoliberal está ainda mais longe de favorecer a liberdade plena do ser humano.
Outro obstáculo, que tem tudo a ver com o primeiro, é o individualismo consumista. Este tornou-se a forma cultural de vida predominante no Ocidente contemporâneo. Pessoas individualistas e consumistas não são capazes de atuar pela vitalidade e pela liberdade, a não ser em auto-benefício - o que, de fato, constitui-se em negação de ambas, posto que não se configura como ação parceira-pactual. O individualismo consumista vincula a identidade da pessoa aos objetos que pode consumir, despersonalizando-a e despersonalizando também as relações inter-pessoais. Semelhantemente, o individualismo consumista gera obstáculos tremendos à responsabilidade pública e, consequentemente, à solidariedade ativa e concreta em defesa dos direitos das vítimas da injustiça cristalizada no capitalismo.
Um último obstáculo a ser mostrado neste post (não último na realidade - deveria falar da ciência, da mídia, do estado...) é a própria religião. A forma contemporânea da religiosidade no Ocidente - nas igrejas e denominações cristãs bem como em outras formas e instituições religiosas - é de cunho individualista, competitivo, consumista e alienante. Na linguagem da carta paulina aos romanos, é uma religiosidade "conformada ao presente século", ou seja, com a cara do mundo presente. Uma religiosidade que abandonou a utopia, que abandonou a esperança, que renunciou à luta pela justiça e à busca pelo reinado de Deus (cf. o Sermão do Monte em Mateus 6), optando pela busca do dinheiro e tudo o que ele pode comprar. Trocou YHWH por Mamon, configurando-se em religiosidade tipicamente idolátrica.
Se queremos viver de modo concreto a parceria de YHWH, não podemos ser românticos, mas, sim, proféticos. Não podemos nos conformar, mas resistir. Resistir duramente ao "sistema" idolátrico que gera não-vitalidade e não-liberdade; posto que só oferece vitalidade e liberdade para quem as acumula e entesoura exclusivamente para si mesmos.
Começando com o mais abstrato: o sistema econômico capitalista. Ficou meio fora de moda criticar o capitalismo de modo radical. Afinal de contas, vivemos na época do pensamento único, do fim das ideologias e das utopias...
Não tenho problema, porém, em estar fora de moda se for necessário. O capitalismo tornou-se um sistema econômico que coloca obstáculos de elevada monta à vitalidade. Apenas exemplos: Posso começar com a crise ambiental que vivemos e que, apesar das grandes reuniões e eventos, ainda não está próxima de ser superada. No final das contas, entre ambiente e lucro, o capitalismo elege o lucro. O capitalismo é gerador de miséria e exclusão, além de manter os trabalhadores dentro de patamares baixos de remuneração - doutra forma a tal de mais-valia (ainda que o conceito mereça revisão) não consegue formar parte do lucro. Ok! Não temos nenhum outro sistema econômico preparado para entrar e substituir o capitalismo. Mas quando o capitalismo iniciou, ele estava na mesma condição em relação ao feudalismo.
Semelhantemente, o capitalismo não é compatível com a liberdade. É moeda corrente nos estudos sociológicos sobre a modernidade - pelo menos entre sociólogos tais como Sousa Santos, José Maurício Domingues, Jessé Souza etc. - que o capitalismo moderno oferece liberdade à troca de mercadorias, mas gera dependência para os trabalhadores e as pessoas que vivem à sua órbita. Em outras palavras, a liberdade formal da cidadania não é acompanhada pela liberdade material da economia. O Estado de bem-estar social não conseguiu superar a dependência, e o atual modelo neoliberal está ainda mais longe de favorecer a liberdade plena do ser humano.
Outro obstáculo, que tem tudo a ver com o primeiro, é o individualismo consumista. Este tornou-se a forma cultural de vida predominante no Ocidente contemporâneo. Pessoas individualistas e consumistas não são capazes de atuar pela vitalidade e pela liberdade, a não ser em auto-benefício - o que, de fato, constitui-se em negação de ambas, posto que não se configura como ação parceira-pactual. O individualismo consumista vincula a identidade da pessoa aos objetos que pode consumir, despersonalizando-a e despersonalizando também as relações inter-pessoais. Semelhantemente, o individualismo consumista gera obstáculos tremendos à responsabilidade pública e, consequentemente, à solidariedade ativa e concreta em defesa dos direitos das vítimas da injustiça cristalizada no capitalismo.
Um último obstáculo a ser mostrado neste post (não último na realidade - deveria falar da ciência, da mídia, do estado...) é a própria religião. A forma contemporânea da religiosidade no Ocidente - nas igrejas e denominações cristãs bem como em outras formas e instituições religiosas - é de cunho individualista, competitivo, consumista e alienante. Na linguagem da carta paulina aos romanos, é uma religiosidade "conformada ao presente século", ou seja, com a cara do mundo presente. Uma religiosidade que abandonou a utopia, que abandonou a esperança, que renunciou à luta pela justiça e à busca pelo reinado de Deus (cf. o Sermão do Monte em Mateus 6), optando pela busca do dinheiro e tudo o que ele pode comprar. Trocou YHWH por Mamon, configurando-se em religiosidade tipicamente idolátrica.
Se queremos viver de modo concreto a parceria de YHWH, não podemos ser românticos, mas, sim, proféticos. Não podemos nos conformar, mas resistir. Resistir duramente ao "sistema" idolátrico que gera não-vitalidade e não-liberdade; posto que só oferece vitalidade e liberdade para quem as acumula e entesoura exclusivamente para si mesmos.
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
Novos Blogs na Lista
Você deve ter percebido que incluí três novos blogs na relação de blogs interessantes. Tirei um, porque ele estava ficando muito desinteressante.
Os três novos: (1)o primeiro desses novos fica sempre no final da lista, pois não permite que as atualizações sejam lidas diretamente pelo sistema blogger - é um blog de artistas cristãos; (2) o blog de um amigo, ex-doutorando da EST, agora doutor, o André, que se especializou em teologia queer - assim, as discussões sobre homossexualidade passam pelo blog dele e só entro no assunto de vez em quando; (3) o blog de Isa Medeiros - "Preguiça Mental". Não a conheço. Não sei de que religião ela é. O seu blog porém é muito interessante, com um jeitão profético, criativo e bem-humorado.
Os três novos: (1)o primeiro desses novos fica sempre no final da lista, pois não permite que as atualizações sejam lidas diretamente pelo sistema blogger - é um blog de artistas cristãos; (2) o blog de um amigo, ex-doutorando da EST, agora doutor, o André, que se especializou em teologia queer - assim, as discussões sobre homossexualidade passam pelo blog dele e só entro no assunto de vez em quando; (3) o blog de Isa Medeiros - "Preguiça Mental". Não a conheço. Não sei de que religião ela é. O seu blog porém é muito interessante, com um jeitão profético, criativo e bem-humorado.
Parceria: Pró-Liberdade
Continuo as reflexões em gotas sobre a berith. Lembrando: (1) berith = parceria/relação pessoal mas não individualista; (2) berith possui várias dimensões, definidas pelos tipos de parceria/relacionamento que são por ela normatizados; (3) a primeira dimensão sobre que refleti foi a "pró-vitalidade" - a parceria de YHWH, a partir do ato criador, é com toda a sua criação e não apenas com os seres humanos.
A segunda dimensão da parceria que desejo ressaltar é a da liberdade. YHWH, pró-vitalidade é também pró-liberdade. Ao criar o mundo, faz desse mundo todo parceiro de seu ato criador, mediante o repartir a responsabilidade de gerar e sustentar a vida. Essa responsabilidade é o modo da parceria YHWH-criação estabelecer a liberdade.
Neste sentido, liberdade não pode ser vista, então, como o direito de fazer o que se quer fazer. Esta concepção é meramente individualista, voluntarista e pró-mortalidade. É melhor pensar na liberdade em outros termos. Por exemplo: nos escritos de Hegel se pode encontrar uma concepção de liberdade como superação da vontade individual a partir do reconhecimento dos direitos e das necessidades dos outros na totalidade social - ou liberdade como vida ética, concretizada no direito universalizável. Esse direito, porém, não pode ser meramente externo ao ser humano, pois, se fosse, não serviria para a liberdade - pois liberdade presupõe não ser determinado exteriormente. Citando o próprio Hegel: “A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade como seu fim, conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim conteúdo universal” (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Loyola, São Paulo, vol. 1, p. 263).
Poderia dar outros exemplos. Fico por aqui. Citei Hegel como um modo de também nos divertirmos. Eu, em particular, sou avesso ao sistema hegeliano. Cito porque, mesmo não aceitando um sistema, podemos dele extrair conceitos e ressignificá-los. Daí: liberdade não é fazer o que eu quero, mas, sim: liberdade é viver a parceria pró-vitalidade (isto ressignifica a noção hegeliana de eticidade). Ser livre é poder fazer tudo aquilo que possibilita a vitalidade. Mas só sou livre em parceria, ou, somente na comunhão com Deus e com sua criação, posso ser livre. Até porque, fora da relação com a criação e com YHWH criador/a, sou apenas um ser em direção à morte. Nunca um ser livre.
Volto ao texto do Gênesis. Os primeiros onze capítulos mostram como a liberdade é perdida na medida em que recusamos a parceria pró-vitalidade. O pecado originante (não "original" - briga da teologia sistemática) pode ser descrito como a tentativa de viver em liberdade sem a parceria - em outras palavras, a proibição simbólica de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal não visava a manutenção de Adão e Eva na inocência infantil. Visava, ao contrário, que Adão e Eva aprendessem que somente na parceria com YHWH o conhecimento do bem e do mal lhes serviria como veículo de liberdade e não de servidão. Daí pecado originante: querer ser livre fora da parceria é a origem de todos os pecados possíveis e imagináveis. ("Que volta estranha!" Talvez você esteja meio perdido com o meu argumento. De fato, deixei muita coisa implícita neste parágrafo. Uma dica para você preencher o argumento, se quiser: leia o Gênesis 2-3 à luz da discussão de Nietazsche e Foucault sobre o saber como poder e o poder como meio de colocar o outro em servidão.)
Um salto no tempo e espaço. De Gênesis a Gálatas. "Para a liberdade Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão" (5:1). "Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, em amor, colocai-vos a serviço uns dos outros" (5:13). Liberdade só existe na parceria com a pessoa messiânica Jesus - fora da parceria, retornamos ao jugo da escravidão ao mundo, ao pecado, à Lei e à carne. Retornamos ao mundo da liberdade como mero dever - externamente imposto sobre nós - seja por Deus, seja pela natureza, seja pelo Direito/Lei, seja pela cultura, etc.
Liberdade só existe na parceria de amor/serviço mútuos que prestamos uns aos outros. Liberdade é liberdade do egoísmo para a liberdade enquanto amar. É a liberdade do dever, para a liberdade enquanto possibilidade. É a liberdade da morte, para a liberdade enquanto vitalidade. Vitalidade que se concretiza no serviço amoroso a todas e todos os parceiros na criação divina. Liberdade é não receber a imposição do dever de nenhuma força externa a nós. O dever (ressignificando Kant) brota de dentro de nós, na relação de parceria pró-vitalidade, com YHWH e toda a criação. Assim, dever é sinônimo de possibilidade. Amo as outras pessoas e criaturas de YHWH porque, na parceria, posso amá-las - e , ao amá-las, também amo a mim mesmo, pois me coloco no lugar de ser amado por todos os demais parceiros e parceiras da parceria pró-vitalidade. Podemos descrever, então, a liberdade, também como hospitalidade - acolher o outro, não-convidado, como co-habitante na minha casa. (Aqui, estão implícitas muitas das discussões éticas de Emanuel Levinas e Jacques Derrida, assim como uma das parábolas de Jesus, a do banquete em Lucas 14:12-14.)
É preciso, agora, dar o salto da linguagem pessoal para a das relações institucionalizadas em nossas sociedades complexas do mundo contemporâneo. Deixo este salto para você.
A segunda dimensão da parceria que desejo ressaltar é a da liberdade. YHWH, pró-vitalidade é também pró-liberdade. Ao criar o mundo, faz desse mundo todo parceiro de seu ato criador, mediante o repartir a responsabilidade de gerar e sustentar a vida. Essa responsabilidade é o modo da parceria YHWH-criação estabelecer a liberdade.
Neste sentido, liberdade não pode ser vista, então, como o direito de fazer o que se quer fazer. Esta concepção é meramente individualista, voluntarista e pró-mortalidade. É melhor pensar na liberdade em outros termos. Por exemplo: nos escritos de Hegel se pode encontrar uma concepção de liberdade como superação da vontade individual a partir do reconhecimento dos direitos e das necessidades dos outros na totalidade social - ou liberdade como vida ética, concretizada no direito universalizável. Esse direito, porém, não pode ser meramente externo ao ser humano, pois, se fosse, não serviria para a liberdade - pois liberdade presupõe não ser determinado exteriormente. Citando o próprio Hegel: “A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade como seu fim, conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim conteúdo universal” (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Loyola, São Paulo, vol. 1, p. 263).
Poderia dar outros exemplos. Fico por aqui. Citei Hegel como um modo de também nos divertirmos. Eu, em particular, sou avesso ao sistema hegeliano. Cito porque, mesmo não aceitando um sistema, podemos dele extrair conceitos e ressignificá-los. Daí: liberdade não é fazer o que eu quero, mas, sim: liberdade é viver a parceria pró-vitalidade (isto ressignifica a noção hegeliana de eticidade). Ser livre é poder fazer tudo aquilo que possibilita a vitalidade. Mas só sou livre em parceria, ou, somente na comunhão com Deus e com sua criação, posso ser livre. Até porque, fora da relação com a criação e com YHWH criador/a, sou apenas um ser em direção à morte. Nunca um ser livre.
Volto ao texto do Gênesis. Os primeiros onze capítulos mostram como a liberdade é perdida na medida em que recusamos a parceria pró-vitalidade. O pecado originante (não "original" - briga da teologia sistemática) pode ser descrito como a tentativa de viver em liberdade sem a parceria - em outras palavras, a proibição simbólica de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal não visava a manutenção de Adão e Eva na inocência infantil. Visava, ao contrário, que Adão e Eva aprendessem que somente na parceria com YHWH o conhecimento do bem e do mal lhes serviria como veículo de liberdade e não de servidão. Daí pecado originante: querer ser livre fora da parceria é a origem de todos os pecados possíveis e imagináveis. ("Que volta estranha!" Talvez você esteja meio perdido com o meu argumento. De fato, deixei muita coisa implícita neste parágrafo. Uma dica para você preencher o argumento, se quiser: leia o Gênesis 2-3 à luz da discussão de Nietazsche e Foucault sobre o saber como poder e o poder como meio de colocar o outro em servidão.)
Um salto no tempo e espaço. De Gênesis a Gálatas. "Para a liberdade Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão" (5:1). "Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, em amor, colocai-vos a serviço uns dos outros" (5:13). Liberdade só existe na parceria com a pessoa messiânica Jesus - fora da parceria, retornamos ao jugo da escravidão ao mundo, ao pecado, à Lei e à carne. Retornamos ao mundo da liberdade como mero dever - externamente imposto sobre nós - seja por Deus, seja pela natureza, seja pelo Direito/Lei, seja pela cultura, etc.
Liberdade só existe na parceria de amor/serviço mútuos que prestamos uns aos outros. Liberdade é liberdade do egoísmo para a liberdade enquanto amar. É a liberdade do dever, para a liberdade enquanto possibilidade. É a liberdade da morte, para a liberdade enquanto vitalidade. Vitalidade que se concretiza no serviço amoroso a todas e todos os parceiros na criação divina. Liberdade é não receber a imposição do dever de nenhuma força externa a nós. O dever (ressignificando Kant) brota de dentro de nós, na relação de parceria pró-vitalidade, com YHWH e toda a criação. Assim, dever é sinônimo de possibilidade. Amo as outras pessoas e criaturas de YHWH porque, na parceria, posso amá-las - e , ao amá-las, também amo a mim mesmo, pois me coloco no lugar de ser amado por todos os demais parceiros e parceiras da parceria pró-vitalidade. Podemos descrever, então, a liberdade, também como hospitalidade - acolher o outro, não-convidado, como co-habitante na minha casa. (Aqui, estão implícitas muitas das discussões éticas de Emanuel Levinas e Jacques Derrida, assim como uma das parábolas de Jesus, a do banquete em Lucas 14:12-14.)
É preciso, agora, dar o salto da linguagem pessoal para a das relações institucionalizadas em nossas sociedades complexas do mundo contemporâneo. Deixo este salto para você.
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Perguntar não ofende!
Candidata eleita Presidente da República: por que não agradeceu a Deus pelos votos que a elegeram neste segundo turno e invocou Sua ajuda para governar sabiamente o país?
Candidato derrotado no segundo turno: por que não agradeceu a Deus e invocou Sua ajuda agora que a "luta continua"?
Candidato derrotado no segundo turno: por que não agradeceu a Deus e invocou Sua ajuda agora que a "luta continua"?
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Parceria: Pró-Vitalidade
Volto ao tema da berith - parceria, aliança ... - a partir do Antigo Testamento. Ao preferir um termo tão frágil quanto o termo parceria e ao descrevê-lo a partir de sua fragilidade - relação pessoal - é preciso acrescentar qualificativos a fim de que a teologia não seja romântica, personalista, individualista e alienada. A fim de que não seja tais coisas, mas de modo que não seja mais do que frágil palavra crítica, reflexiva, discurso, esperança.
Pró-vitalidade. Evite o termo pró-vida por causa de sua utilização no debate sobre legalidade do aborto, tema que não tratarei aqui e agora. Pró-vitalidade. Estou pensando nos dois relatos iniciais da Torá - que são dois relatos sobre a criação divina (Gn 1:1-2:4a e Gn 2:4b-3:24). A Escritura inicia, teologicamente falando, com a afirmação de Elohim-YHWH como Criador de todas as coisas que existem. Deus é pró-vitalidade: ele a vivencia plenamente, ele a reparte com suas criaturas, ele a torna normativa para a parte da criação que entra em parceria pessoal com o/a criador/a.
Que é vitalidade? Cito um teólogo sistemático fora-da-caixa: “Iremos interpretar vitalidade como amor pela vida. Este amor pela vida vincula os seres humanos com todos os demais seres vivos, que não estão apenas vivos, mas querem viver. Desafia, também, os seres humanos em sua estranha liberdade para a vida; pois a vida, que pode ser deliberadamente negada, tem de ser afirmada antes de poder ser vivida. O amor pela vida diz sim à vida a despeito de suas doenças, deformidades e enfermidades, e abre a porta para uma vida contra a morte.” (MOLTMANN, Jürgen. The Spirit of Life. A universal affirmation, Minneapolis, Fortress Press, 1992, p. 86)
Na parceria YHWH/nós-humanos, o amor pela vida é a categoria normativa chave. O amor pela vida de todas as criaturas, pois todas as criaturas divinas (minerais, vegetais, animais...) se constituem como um harmonioso-conflitivo ambiente interconectado e interdependente - simultaneamente conflitivo e harmonioso. Um lembrete: os primeiros animais a serem abençoados por Elohim-YHWH não foram os animais-humanos (Gênesis 1:20-25).
Se a parceria é pró-vitalidade, ela é contra que? Contra a violência. Contra a opressão. Contra a injustiça. Contra a miséria. Contra o abuso dos recursos planetários-cósmicos. Contra a acumulação de capital. Contra o consumismo. Etc. - Você deve definir o que cabe no "etc.". "Contra", porque muita gente prefere a força de amar a sua própria vida em vez de amar a vida de toda a criação.
Se ela é pró-vitalidade, ela é pró que? A parceria divina-humana é a favor de vida digna para todas as criaturas. É a favor, primariamente, das criaturas cuja vida em plenitude esteja ameaçada pelo que nós-humanos fazemos. A favor dos minerais, vegetais e animais que não têm vez e voz nas grandes decisões políticas e éticas. É a favor das pessoas empobrecidas, marginalizadas, abandonadas, excluídas - pelo sistema político-econômico-tecnocientífico-midiático. Pessoas cujo clamor Elohim-YHWH ouve, mas a maioria de nós-humanos é incapaz de ouvir, pois só consegue ouvir sua própria voz altissonante que diz "compre", "tenha", "determine", "seja famoso/a"...
Parceria pró-vitalidade é uma afirmação teológica frágil que deseja reafirmar, em pleno século XXI, as grandes bandeiras éticas de teologias como a liberal, a do evangelho social, a da libertação, a negra, a feminista, a da missão integral ...
Note bem: as grandes bandeiras éticas - o que é bem diferente de querer reafirmar os conceitos teológicos e suas sistematizações.
A meu ver, todas essas teologia, enquanto formas sistemáticas de conceituação, já estão fora de seu prazo de validade. Enquanto, porém, houver pobres neste mundo, discriminação por sexo, raça, cor, credo, injustiça social, etc. o grito dessas teologias continua em plena validade. Uma parceria pró-vitalidade é uma parceria libertadora, emancipadora, humanizadora, eco-transformadora.
Nada de romantismo. Nada de individualismo. Nada de ideologismo. Muito, sim, de con-vocação à responsabilidade, à solidariedade, à cidadania ...
Pró-vitalidade. Evite o termo pró-vida por causa de sua utilização no debate sobre legalidade do aborto, tema que não tratarei aqui e agora. Pró-vitalidade. Estou pensando nos dois relatos iniciais da Torá - que são dois relatos sobre a criação divina (Gn 1:1-2:4a e Gn 2:4b-3:24). A Escritura inicia, teologicamente falando, com a afirmação de Elohim-YHWH como Criador de todas as coisas que existem. Deus é pró-vitalidade: ele a vivencia plenamente, ele a reparte com suas criaturas, ele a torna normativa para a parte da criação que entra em parceria pessoal com o/a criador/a.
Que é vitalidade? Cito um teólogo sistemático fora-da-caixa: “Iremos interpretar vitalidade como amor pela vida. Este amor pela vida vincula os seres humanos com todos os demais seres vivos, que não estão apenas vivos, mas querem viver. Desafia, também, os seres humanos em sua estranha liberdade para a vida; pois a vida, que pode ser deliberadamente negada, tem de ser afirmada antes de poder ser vivida. O amor pela vida diz sim à vida a despeito de suas doenças, deformidades e enfermidades, e abre a porta para uma vida contra a morte.” (MOLTMANN, Jürgen. The Spirit of Life. A universal affirmation, Minneapolis, Fortress Press, 1992, p. 86)
Na parceria YHWH/nós-humanos, o amor pela vida é a categoria normativa chave. O amor pela vida de todas as criaturas, pois todas as criaturas divinas (minerais, vegetais, animais...) se constituem como um harmonioso-conflitivo ambiente interconectado e interdependente - simultaneamente conflitivo e harmonioso. Um lembrete: os primeiros animais a serem abençoados por Elohim-YHWH não foram os animais-humanos (Gênesis 1:20-25).
Se a parceria é pró-vitalidade, ela é contra que? Contra a violência. Contra a opressão. Contra a injustiça. Contra a miséria. Contra o abuso dos recursos planetários-cósmicos. Contra a acumulação de capital. Contra o consumismo. Etc. - Você deve definir o que cabe no "etc.". "Contra", porque muita gente prefere a força de amar a sua própria vida em vez de amar a vida de toda a criação.
Se ela é pró-vitalidade, ela é pró que? A parceria divina-humana é a favor de vida digna para todas as criaturas. É a favor, primariamente, das criaturas cuja vida em plenitude esteja ameaçada pelo que nós-humanos fazemos. A favor dos minerais, vegetais e animais que não têm vez e voz nas grandes decisões políticas e éticas. É a favor das pessoas empobrecidas, marginalizadas, abandonadas, excluídas - pelo sistema político-econômico-tecnocientífico-midiático. Pessoas cujo clamor Elohim-YHWH ouve, mas a maioria de nós-humanos é incapaz de ouvir, pois só consegue ouvir sua própria voz altissonante que diz "compre", "tenha", "determine", "seja famoso/a"...
Parceria pró-vitalidade é uma afirmação teológica frágil que deseja reafirmar, em pleno século XXI, as grandes bandeiras éticas de teologias como a liberal, a do evangelho social, a da libertação, a negra, a feminista, a da missão integral ...
Note bem: as grandes bandeiras éticas - o que é bem diferente de querer reafirmar os conceitos teológicos e suas sistematizações.
A meu ver, todas essas teologia, enquanto formas sistemáticas de conceituação, já estão fora de seu prazo de validade. Enquanto, porém, houver pobres neste mundo, discriminação por sexo, raça, cor, credo, injustiça social, etc. o grito dessas teologias continua em plena validade. Uma parceria pró-vitalidade é uma parceria libertadora, emancipadora, humanizadora, eco-transformadora.
Nada de romantismo. Nada de individualismo. Nada de ideologismo. Muito, sim, de con-vocação à responsabilidade, à solidariedade, à cidadania ...
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Alunos universitários agridem colegas da Unesp em "rodeio de gordas"
Só para registrar, copiando da Folha de São Paulo, edição online.
Que passa na cabeça de universitários que fazem de suas colegas "animais de rodeio"? Não é só machismo. Não é só ignorância. É algo mais, muito pior. E na maior cara de pau, segundo a reportagem da Folha, os responsáveis por tal estupidez ainda se defenderam: "é só brincadeira".
Em uma sociedade consumista, dinheirista, que idolatra as "medidas certas" das modelos esqueléticas, a "alimentação saudável" dos corpos de academia, cada vez mais se pratica a desumanização. Já não basta o estigma social colocado sobre as pessoas que não correspondem aos padrões de medição corpórea? Já não basta o sexismo ainda existente e imperante?
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/820901-alunos-universitarios-agridem-colegas-da-unesp-em-rodeio-de-gordas.shtml
E isso acontece em meio a avanços tímidos da equidade entre homens-mulheres na sociedade brasileira. Confiram:
http://oglobo.globo.com/economia/mat/2010/10/12/brasil-volta-cair-em-ranking-de-igualdade-entre-sexos-922766697.asp
Que passa na cabeça de universitários que fazem de suas colegas "animais de rodeio"? Não é só machismo. Não é só ignorância. É algo mais, muito pior. E na maior cara de pau, segundo a reportagem da Folha, os responsáveis por tal estupidez ainda se defenderam: "é só brincadeira".
Em uma sociedade consumista, dinheirista, que idolatra as "medidas certas" das modelos esqueléticas, a "alimentação saudável" dos corpos de academia, cada vez mais se pratica a desumanização. Já não basta o estigma social colocado sobre as pessoas que não correspondem aos padrões de medição corpórea? Já não basta o sexismo ainda existente e imperante?
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/820901-alunos-universitarios-agridem-colegas-da-unesp-em-rodeio-de-gordas.shtml
E isso acontece em meio a avanços tímidos da equidade entre homens-mulheres na sociedade brasileira. Confiram:
http://oglobo.globo.com/economia/mat/2010/10/12/brasil-volta-cair-em-ranking-de-igualdade-entre-sexos-922766697.asp
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Que tipo de parceria?
Como afirmei no post anterior, penso que o termo parceria é a melhor tradução para o português do significado teológico (propriamente dito) da palavra hebraica berith.
A maior parte das traduções modernas da Bíblia, porém, prefere o termo aliança - que não é ruim - mas ainda assim prefiro parceria. Por quê? Porque a palavra parceria possui em seu núcleo semântico a idéia de um relacionamento interpessoal, não mediado institucionalmente, nem intermediado pessoalmente. Para a versão protestante de cristianismo, a relação da pessoa com Deus é uma relação não-humanamente-mediada (seja por mediação pessoal, seja, especialmente, por mediação institucional). Isto não significa, é claro, que a relação com Deus seja concebida de modo individualista, nem que seja concebida em oposição à participação da pessoa em uma comunidade eclesial.
A ênfase principal recai sobre o fato de que a relação com Deus é pessoal, ou seja, individual e intransferível. "Eu" me relaciono com Deus, a parceria é entre duas pessoas um "eu" e um "tu", entre as quais nada pode se intrometer para definir os termos da relação. Não é possível manter relação com Deus mediante procuração, ou mediante vicariedade, ou mediante solidariedade. "Eu" e "tu" são parceiros enquanto se mantêm na relação eu-tu.
Por outro lado, em função do individualismo que infesta as culturas ocidentais, é importante destacar que a pessoalidade sempre implica em intersubjetividade (ou interpessoalidade, embora este termo não seja comumente usado). A intersubjetividade presente na pessoalidade da parceria, entretanto, não é do caráter da intermediação, nem da representação, mas, da apresentação (no sentido de pessoas apresentando pessoas a outras pessoas). Uma vez apresentadas, o conjunto das pessoas envolvidas passa a formar uma comunidade, uma comunhão de pessoas que se comunicam, buscando a construção de um projeto comum de vida em parceria.
Colocada desta maneira, a significação teológica da parceria se revela prisioneira de uma grande dose de fragilidade. Relações interpessoais podem terminar a qualquer momento. Podem ser cooptadas institucionalmente e transformadas em relações contratuais. Podem ser manipuladas de tal forma que a parceria se extinga e ocorra em seu lugar o uso de uma pessoa por outra(s). Talvez por isso encontremos um dito "enigmático" de Jesus no evangelho de Lucas: o reino de deus é tomado violentamente. Talvez por isso Paulo tenha destacado o poder da fraqueza de Deus. Talvez por isso as virtudes "teologais" sejam fé, amor e esperança - virtudes frágeis, duas das quais meramente temporárias, sendo que somente o amor permanece além e aquém da temporalidade.
A maior parte das traduções modernas da Bíblia, porém, prefere o termo aliança - que não é ruim - mas ainda assim prefiro parceria. Por quê? Porque a palavra parceria possui em seu núcleo semântico a idéia de um relacionamento interpessoal, não mediado institucionalmente, nem intermediado pessoalmente. Para a versão protestante de cristianismo, a relação da pessoa com Deus é uma relação não-humanamente-mediada (seja por mediação pessoal, seja, especialmente, por mediação institucional). Isto não significa, é claro, que a relação com Deus seja concebida de modo individualista, nem que seja concebida em oposição à participação da pessoa em uma comunidade eclesial.
A ênfase principal recai sobre o fato de que a relação com Deus é pessoal, ou seja, individual e intransferível. "Eu" me relaciono com Deus, a parceria é entre duas pessoas um "eu" e um "tu", entre as quais nada pode se intrometer para definir os termos da relação. Não é possível manter relação com Deus mediante procuração, ou mediante vicariedade, ou mediante solidariedade. "Eu" e "tu" são parceiros enquanto se mantêm na relação eu-tu.
Por outro lado, em função do individualismo que infesta as culturas ocidentais, é importante destacar que a pessoalidade sempre implica em intersubjetividade (ou interpessoalidade, embora este termo não seja comumente usado). A intersubjetividade presente na pessoalidade da parceria, entretanto, não é do caráter da intermediação, nem da representação, mas, da apresentação (no sentido de pessoas apresentando pessoas a outras pessoas). Uma vez apresentadas, o conjunto das pessoas envolvidas passa a formar uma comunidade, uma comunhão de pessoas que se comunicam, buscando a construção de um projeto comum de vida em parceria.
Colocada desta maneira, a significação teológica da parceria se revela prisioneira de uma grande dose de fragilidade. Relações interpessoais podem terminar a qualquer momento. Podem ser cooptadas institucionalmente e transformadas em relações contratuais. Podem ser manipuladas de tal forma que a parceria se extinga e ocorra em seu lugar o uso de uma pessoa por outra(s). Talvez por isso encontremos um dito "enigmático" de Jesus no evangelho de Lucas: o reino de deus é tomado violentamente. Talvez por isso Paulo tenha destacado o poder da fraqueza de Deus. Talvez por isso as virtudes "teologais" sejam fé, amor e esperança - virtudes frágeis, duas das quais meramente temporárias, sendo que somente o amor permanece além e aquém da temporalidade.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Deus, nosso parceiro.
Mudando de Assunto! Chega de brincadeiras de mau-gosto. Vamos voltar aos papos teológicos mais agradáveis. Já expus minha indignação. É hora do prazer e da diversão.
No último fim de semana lecionei em Petrópolis um tema de teologia do antigo testamento - o da aliança (BERITH em hebraico). Nas discussões acadêmicas há um imenso material sobre o tema. Aprendi muito com os especialistas que eu li. Mas, acho que ainda há lugar para uma descrição diferente do significado desse conceito da aliança.
Que característica do ser-agir de YHWH é destacada pelo uso dessa palavra/termo no AT? Para mim, a melhor síntese desse uso pode ser feita pela palavra "parceria". O conceito teológico da aliança no AT nos apresenta um Deus parceiro da gente, parceiro de toda a criação.
As palavras parceria e parceiro não têm feito parte do vocabulário técnico da teologia. A linguagem técnica prefere aliança, pacto, tratado, contrato, decreto, etc. Essas palavras têm sua vez, não nego. Mas. Mas, porém, todavia ...
Aliança é, antes, aquém e acima de tudo, uma parceria que Deus faz com sua criação. Deus se aproxima da gente e da criação. Parceiro é quem se aproxima, quem anda junto, quem suporta a/o outro/a parceiro nos seus limties, quem se alegra com a/o parceira/o nas suas alegrias...
Assim é, me parece, YHWH. Parceiro. ParceirA, também, por que não? A soberania, a transcendência, a exaltação, a santidade e os demais atributos inefáveis de YHWH não anulam este aspecto do sentido da palavra bíblica "aliança". YHWH é parceiro, amigo, companheiro, camarada...
O problema é que nós, muita vez, abusamos dos parceiros. Achamos que camarada é gente pra usar e abusar. Nós é que somos parceiros "meia-boca". YHWH é parceira/o de primeira qualidade. Fiel o tempo todo. Sempre fiel. Sempre companheir@. A questão para a gente refletir é: e eu, desfruto fielmente da parceria de YHWH, ou fico sacaneando o/a parceiro/a?
Como eu sei que permaneço fiel? Quando eu não deixo minha infidelidade durar mais tempo do que o humanamente necessário. Quando eu passo mais tempo do que eu costumo sendo parceiro das pessoas que precisam de mim. Quando o dinheiro, o prestígio, a influência, o poder, o ganho não são meus parceiros, mas apenas objetos que uso e jogo fora quando gastos. Com certeza tem mais coisa a se dizer sobre isto ...
No último fim de semana lecionei em Petrópolis um tema de teologia do antigo testamento - o da aliança (BERITH em hebraico). Nas discussões acadêmicas há um imenso material sobre o tema. Aprendi muito com os especialistas que eu li. Mas, acho que ainda há lugar para uma descrição diferente do significado desse conceito da aliança.
Que característica do ser-agir de YHWH é destacada pelo uso dessa palavra/termo no AT? Para mim, a melhor síntese desse uso pode ser feita pela palavra "parceria". O conceito teológico da aliança no AT nos apresenta um Deus parceiro da gente, parceiro de toda a criação.
As palavras parceria e parceiro não têm feito parte do vocabulário técnico da teologia. A linguagem técnica prefere aliança, pacto, tratado, contrato, decreto, etc. Essas palavras têm sua vez, não nego. Mas. Mas, porém, todavia ...
Aliança é, antes, aquém e acima de tudo, uma parceria que Deus faz com sua criação. Deus se aproxima da gente e da criação. Parceiro é quem se aproxima, quem anda junto, quem suporta a/o outro/a parceiro nos seus limties, quem se alegra com a/o parceira/o nas suas alegrias...
Assim é, me parece, YHWH. Parceiro. ParceirA, também, por que não? A soberania, a transcendência, a exaltação, a santidade e os demais atributos inefáveis de YHWH não anulam este aspecto do sentido da palavra bíblica "aliança". YHWH é parceiro, amigo, companheiro, camarada...
O problema é que nós, muita vez, abusamos dos parceiros. Achamos que camarada é gente pra usar e abusar. Nós é que somos parceiros "meia-boca". YHWH é parceira/o de primeira qualidade. Fiel o tempo todo. Sempre fiel. Sempre companheir@. A questão para a gente refletir é: e eu, desfruto fielmente da parceria de YHWH, ou fico sacaneando o/a parceiro/a?
Como eu sei que permaneço fiel? Quando eu não deixo minha infidelidade durar mais tempo do que o humanamente necessário. Quando eu passo mais tempo do que eu costumo sendo parceiro das pessoas que precisam de mim. Quando o dinheiro, o prestígio, a influência, o poder, o ganho não são meus parceiros, mas apenas objetos que uso e jogo fora quando gastos. Com certeza tem mais coisa a se dizer sobre isto ...
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Blasfêmia?
Blasfêmia é um termo que saiu fora de moda. No mundo do "politicamente correto" e da "liberdade de expressão", a acusação de blasfêmia (uma fala que desonra a Deus, ou a instituição religiosa que representa Deus, ou a religião mesma) é normalmente vista como retrógrada, autoritária, intolerante - lembremos dos casos em que o Islamismo foi acusado de tal atitude - a condenação de Salman Rushdie e o episódio dos cartoons. Houve casos em que Igrejas cristãs se posicionaram radicalmente contrárias a certos filmes ou obras de arte, recentemente - e embora não tenham usado tal palavra, a acusação de intolerância foi levantada imediatamente.
Como, porém, avaliar o atual momento da campanha eleitoral pela presidência da República? Uma candidata se reúne com lideranças evangélicas(?) e, ao ouvir uma exigência vazia, assume um compromisso inútil (a carta sobre o aborto). Vazia e inútil, por quê? Porque já há vários projetos de lei em discussão no Congresso Nacional sobre a descriminalização parcial ou total do aborto (em acréscimo às exceções já previstas em lei). Ora, a troco de que a futura-esperançosa presidente da república promete que não tomará iniciativa no envio de projetos de lei ao Congresso relativos ao aborto, se tais já existem e se qualquer deputado ou senador pode fazê-lo? e cito a sua carta: "3. Eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão de qualquer religião no País." Bela e vazia e inútil e astuta promessa - astuta, porque a candidata não disse ser contra a descriminalização do aborto, pois se o tivesse dito, teria de explicar a mudança (suposta ou real) de posição.
Vejamos mais um exemplo de inutilidade: "Com relação ao PLC 122, caso aprovado no Senado, onde tramita atualmente, será sancionado em meu futuro (sic!) governo nos artigos que não violem a liberdade de crença, culto e expressão e demais garantias constitucionais individuais existentes no país." Ora, a troco de que a candidata promete que irá cumprir a Constituição se eleita? Não fará nada mais do que sua obrigação constitucional como principal executiva do país! Isto sem contar com a possibilidade de derrubada do veto presidencial, e sem contar com o Supremo Tribunal Federal, corte que é responsável pela análise de casos de possível violação da constituição por leis ...
Bem, quem pediu ignorantemente o compromisso, recebeu o que pediu. Evangélicos (quem são eles?) abandonaram a altiva alienação da política partidária e assumiram a ignorante participação na campanha. Cá entre nós, muito pior!, mas bota muito nisso!!! Que é tal conversa, senão blasfêmia? Deus é desonrado pela ignorância dos que se pretendem seus representantes, é desonrado pela sagacidade política da candidata que angaria votos cristãos com promessas vazias e compromissos inúteis.
Do outro lado da campanha, nada melhor. Pior, até! A campanha do candidato José Serra conta agora com um novo santinho, em que a frase "Jesus é a verdade e a justiça" recebe o peso da autoridade da assinatura do candidato. Usar o nome e o caráter de Jesus para ganhar votos, senhor candidato, é blasfêmia! Desonra o nome de Deus ser vinculado servilmente a propósitos eleitorais (ou eleitoreiros?) e ser subordinado à autoridade do futuro-esperançoso presidente da República.
E os folhetos e textos - supostamente - de autoria da CNBB contra a candidata Dilma? (o que é negado pelos seus líderes) - cito a fonte da notícia, não da defesa da CNBB: "Neste domingo (17), a Polícia Federal apreendeu em uma gráfica em São Paulo, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), folhetos com o texto intitulado "Apelo a todos os brasileiros e brasileiras", assinado pela Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O folheto relaciona a candidata do PT à defesa da legalização do aborto. Segundo a gráfica, os folhetos foram encomendados pela Diocese de Guarulhos (SP)." http://www.jusbrasil.com.br/politica/6076943/serra-nega-participacao-do-psdb-em-folhetos-religiosos-contra-dilma). Ultraje à CNBB ter seu nome usado dessa maneira. Blasfêmia! Desonra a Deus que seu Santo nome seja desonrado em prol da fé na vitória eleitoral de tal ou qual candidato(a).
Blasfêmia, porque Deus é desonrado quando candidatos à presidência de uma república democrática reduzem a campanha a questões morais-religiosas e desconsideram os cidadãos não-cristãos que aqui habitam. Como Deus não faz acepção de pessoas, mas faz cair sol e chuva sobre "justos e injustos", a parcialidade religiosa da campanha é uma afronta contra o nome de Deus. (Ah! antes que nos esqueçamos: Jesus morreu e ressuscitou pelos injustos, não pelos justos ...)
Ainda bem que Deus não é um todo poderoso ancião vingador, doutra sorte ai de nós, brasileiros, que seríamos vítimas das iras e maldições da divindade desonrada.
Ainda é tempo de pedir perdão. Quem se habilita?
Como, porém, avaliar o atual momento da campanha eleitoral pela presidência da República? Uma candidata se reúne com lideranças evangélicas(?) e, ao ouvir uma exigência vazia, assume um compromisso inútil (a carta sobre o aborto). Vazia e inútil, por quê? Porque já há vários projetos de lei em discussão no Congresso Nacional sobre a descriminalização parcial ou total do aborto (em acréscimo às exceções já previstas em lei). Ora, a troco de que a futura-esperançosa presidente da república promete que não tomará iniciativa no envio de projetos de lei ao Congresso relativos ao aborto, se tais já existem e se qualquer deputado ou senador pode fazê-lo? e cito a sua carta: "3. Eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão de qualquer religião no País." Bela e vazia e inútil e astuta promessa - astuta, porque a candidata não disse ser contra a descriminalização do aborto, pois se o tivesse dito, teria de explicar a mudança (suposta ou real) de posição.
Vejamos mais um exemplo de inutilidade: "Com relação ao PLC 122, caso aprovado no Senado, onde tramita atualmente, será sancionado em meu futuro (sic!) governo nos artigos que não violem a liberdade de crença, culto e expressão e demais garantias constitucionais individuais existentes no país." Ora, a troco de que a candidata promete que irá cumprir a Constituição se eleita? Não fará nada mais do que sua obrigação constitucional como principal executiva do país! Isto sem contar com a possibilidade de derrubada do veto presidencial, e sem contar com o Supremo Tribunal Federal, corte que é responsável pela análise de casos de possível violação da constituição por leis ...
Bem, quem pediu ignorantemente o compromisso, recebeu o que pediu. Evangélicos (quem são eles?) abandonaram a altiva alienação da política partidária e assumiram a ignorante participação na campanha. Cá entre nós, muito pior!, mas bota muito nisso!!! Que é tal conversa, senão blasfêmia? Deus é desonrado pela ignorância dos que se pretendem seus representantes, é desonrado pela sagacidade política da candidata que angaria votos cristãos com promessas vazias e compromissos inúteis.
Do outro lado da campanha, nada melhor. Pior, até! A campanha do candidato José Serra conta agora com um novo santinho, em que a frase "Jesus é a verdade e a justiça" recebe o peso da autoridade da assinatura do candidato. Usar o nome e o caráter de Jesus para ganhar votos, senhor candidato, é blasfêmia! Desonra o nome de Deus ser vinculado servilmente a propósitos eleitorais (ou eleitoreiros?) e ser subordinado à autoridade do futuro-esperançoso presidente da República.
E os folhetos e textos - supostamente - de autoria da CNBB contra a candidata Dilma? (o que é negado pelos seus líderes) - cito a fonte da notícia, não da defesa da CNBB: "Neste domingo (17), a Polícia Federal apreendeu em uma gráfica em São Paulo, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), folhetos com o texto intitulado "Apelo a todos os brasileiros e brasileiras", assinado pela Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O folheto relaciona a candidata do PT à defesa da legalização do aborto. Segundo a gráfica, os folhetos foram encomendados pela Diocese de Guarulhos (SP)." http://www.jusbrasil.com.br/politica/6076943/serra-nega-participacao-do-psdb-em-folhetos-religiosos-contra-dilma). Ultraje à CNBB ter seu nome usado dessa maneira. Blasfêmia! Desonra a Deus que seu Santo nome seja desonrado em prol da fé na vitória eleitoral de tal ou qual candidato(a).
Blasfêmia, porque Deus é desonrado quando candidatos à presidência de uma república democrática reduzem a campanha a questões morais-religiosas e desconsideram os cidadãos não-cristãos que aqui habitam. Como Deus não faz acepção de pessoas, mas faz cair sol e chuva sobre "justos e injustos", a parcialidade religiosa da campanha é uma afronta contra o nome de Deus. (Ah! antes que nos esqueçamos: Jesus morreu e ressuscitou pelos injustos, não pelos justos ...)
Ainda bem que Deus não é um todo poderoso ancião vingador, doutra sorte ai de nós, brasileiros, que seríamos vítimas das iras e maldições da divindade desonrada.
Ainda é tempo de pedir perdão. Quem se habilita?
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Em quem votar nesta eleição? Critérios Teológicos?
Nas últimas semanas tenho acompanhado as polêmicas religiosas relativas à escolha de candidato à presidência da República, em relação às quais já fiz alguns posts aqui no blog. Desejo retomar o assunto, tentando responder às perguntas do título.
1. Começo com a segunda: existem critérios teológicos específicos para a escolha de um(a) candidato(a) a um cargo estatal? Minha resposta é simples e direta: não! Critérios teológicos existem em âmbito mais geral, mais abstrato, tais como justiça social, eqüidade, liberdade, etc. Este tipo de critérios não permite um vínculo causal direto com a escolha de tal ou qual candidato a um cargo qualquer, mesmo o da presidência da república.
Os critérios de cunho mais genérico nos fazem perguntar pelo projeto político do partido (ou coligação de partidos) pelo qual o/a candidato/a concorre ao cargo estatal. Por exemplo: se elegermos tal projeto político, podemos esperar uma melhoria nas condições de vida da população mais pobre? podemos esperar maior eqüidade social e econômica? podemos esperar maior dose de liberdade individual com respeito à lei e aos direitos do próximo?
Colocando a questão da maneira acima, parece-me que fica bastante claro que não é possível formular uma relação causal pura e simples entre opção teológica e opção eleitoral. Entretanto, na linha do último post, tal forma de ver a questão possui uma importante implicação ética: que faremos nós, eleitoras e eleitores, para ajudar o governo eleito a cumprir sua vocação? Que faremos nós para fiscalizar o cumprimento do projeto político que elegemos?
2. Encaminho-me à primeira pergunta. Em quem votar neste segundo turno nas eleições para presidente da república?
Em primeiro lugar: não devemos impor, por razões éticas, ou por razões teológicas, à comunidade eclesial, este ou aquele candidato. Não podemos, do ponto de vista dos direitos fundamentais e da ética cristã, definir o voto de quem quer que seja. Em outras palavras: dizer que um cristão deve votar na Dilma ou no Serra, por razões éticas ou teológicas, é ferir o princípio ético e jurídico das liberdades fundamentais da pessoa humana.
Dito isto, não resta, então, nada a fazer no tocante à escolha de candidatos? Pelo contrário. Há muito que se fazer. Pastores, pastoras, padres, e demais líderes cristãos e de outras religiões, em uma sociedade democrática, deveriam ser pessoas capazes de orientar as suas comunidades sobre o sentido amplo da política e da escolha eleitoral. Orientar, insisto, e não direcionar. Se dizemos que a comunidade deve votar neste ou naquela, contribuímos para a manutenção da dependência ética e intelectual dos membros da comunidade. Em termos teológicos: negamos a nossa vocação de líderes que edificam, e assumimos a condição de líderes que infantilizam.
Podemos ajudar nossas comunidades a formular critérios políticos para a escolha pessoal, livre e responsável. Lembro-me de um post antigo aqui no blog, em que me perguntava que tipo de ensino o jogador de futebol Neymar recebia de seu pastor, na igreja evangélica a que pertence, pois ele dizia não se interessar por política quando perguntado sobre em quem votaria para presidente. Ou não recebia nenhuma orientação, ou recebia a pior possível: uma teologia dualista que afirma que nossa cidadania é apenas e tão somente celestial, de modo que a terrena não tem valor.
Se, voltando à polêmica, nosso voto será decidido especificamente pela questão da descriminalização do aborto, então será um péssimo voto. As questões éticas vinculadas ao aborto são importantes e complexas, não devemos menosprezá-las. Entretanto, o papel da presidência da república transcende em muito a questão ética do aborto. Tem a ver com a ética pública em sentido amplo: governar visando o maior grau possível de justiça para o maior número possível de pessoas em seus contextos sócio-culturais e econômicos. Governar, a partir de um projeto partidário, mas transcendendo esse projeto, visando a melhoria da vida de toda a população. Governar de modo que o compromisso pessoal e individual de cada cidadão com a plena cidadania cresça e se concretize na defesa dos direitos de todas as pessoas.
Quem é capaz de fazer essas coisas?
1. Começo com a segunda: existem critérios teológicos específicos para a escolha de um(a) candidato(a) a um cargo estatal? Minha resposta é simples e direta: não! Critérios teológicos existem em âmbito mais geral, mais abstrato, tais como justiça social, eqüidade, liberdade, etc. Este tipo de critérios não permite um vínculo causal direto com a escolha de tal ou qual candidato a um cargo qualquer, mesmo o da presidência da república.
Os critérios de cunho mais genérico nos fazem perguntar pelo projeto político do partido (ou coligação de partidos) pelo qual o/a candidato/a concorre ao cargo estatal. Por exemplo: se elegermos tal projeto político, podemos esperar uma melhoria nas condições de vida da população mais pobre? podemos esperar maior eqüidade social e econômica? podemos esperar maior dose de liberdade individual com respeito à lei e aos direitos do próximo?
Colocando a questão da maneira acima, parece-me que fica bastante claro que não é possível formular uma relação causal pura e simples entre opção teológica e opção eleitoral. Entretanto, na linha do último post, tal forma de ver a questão possui uma importante implicação ética: que faremos nós, eleitoras e eleitores, para ajudar o governo eleito a cumprir sua vocação? Que faremos nós para fiscalizar o cumprimento do projeto político que elegemos?
2. Encaminho-me à primeira pergunta. Em quem votar neste segundo turno nas eleições para presidente da república?
Em primeiro lugar: não devemos impor, por razões éticas, ou por razões teológicas, à comunidade eclesial, este ou aquele candidato. Não podemos, do ponto de vista dos direitos fundamentais e da ética cristã, definir o voto de quem quer que seja. Em outras palavras: dizer que um cristão deve votar na Dilma ou no Serra, por razões éticas ou teológicas, é ferir o princípio ético e jurídico das liberdades fundamentais da pessoa humana.
Dito isto, não resta, então, nada a fazer no tocante à escolha de candidatos? Pelo contrário. Há muito que se fazer. Pastores, pastoras, padres, e demais líderes cristãos e de outras religiões, em uma sociedade democrática, deveriam ser pessoas capazes de orientar as suas comunidades sobre o sentido amplo da política e da escolha eleitoral. Orientar, insisto, e não direcionar. Se dizemos que a comunidade deve votar neste ou naquela, contribuímos para a manutenção da dependência ética e intelectual dos membros da comunidade. Em termos teológicos: negamos a nossa vocação de líderes que edificam, e assumimos a condição de líderes que infantilizam.
Podemos ajudar nossas comunidades a formular critérios políticos para a escolha pessoal, livre e responsável. Lembro-me de um post antigo aqui no blog, em que me perguntava que tipo de ensino o jogador de futebol Neymar recebia de seu pastor, na igreja evangélica a que pertence, pois ele dizia não se interessar por política quando perguntado sobre em quem votaria para presidente. Ou não recebia nenhuma orientação, ou recebia a pior possível: uma teologia dualista que afirma que nossa cidadania é apenas e tão somente celestial, de modo que a terrena não tem valor.
Se, voltando à polêmica, nosso voto será decidido especificamente pela questão da descriminalização do aborto, então será um péssimo voto. As questões éticas vinculadas ao aborto são importantes e complexas, não devemos menosprezá-las. Entretanto, o papel da presidência da república transcende em muito a questão ética do aborto. Tem a ver com a ética pública em sentido amplo: governar visando o maior grau possível de justiça para o maior número possível de pessoas em seus contextos sócio-culturais e econômicos. Governar, a partir de um projeto partidário, mas transcendendo esse projeto, visando a melhoria da vida de toda a população. Governar de modo que o compromisso pessoal e individual de cada cidadão com a plena cidadania cresça e se concretize na defesa dos direitos de todas as pessoas.
Quem é capaz de fazer essas coisas?
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
Política Cristã? Buscando viver eticamente
Exercer eticamente a cidadania é um desafio ético prioritário em sociedades democráticas. A ação cidadã não se restringe ao voto e ao cumprimento das leis do país. A ação cidadã implica, exige que a ação de cada cidadã e cidadão seja dirigida à construção de uma sociedade cada vez mais justa, livre, harmoniosa e pacífica. Ser cidadão significa participar ativamente da vida pública do país, seja na esfera da política partidária, seja na esfera dos movimentos sociais, seja na esfera das instituições governamentais (municipais, estaduais e federais), seja na das instituições mistas (conselhos tutelares, etc.), seja no chamado Terceiro Setor, seja no âmbito micro-social do bairro, da vizinhança. Participar ativamente de modo a que cada vez mais pessoas sejam beneficiadas pela justiça, e se implante mais e mais o bem comum.
No regime político em que vivemos, as relações de poder estruturadas não são apenas as relações especificamente estatais. As sociedades democráticas capitalistas contemporâneas possuem também outros tipos de relações estruturadas de poder: o poder econômico, o poder científico-tecnológico, e o poder midiático. Uma ética política evangélica também tem de formular valores e princípios apropriados para o exercício das relações de poder no âmbito dessas estruturações sociais. Na estruturação econômica capitalista, as relações de poder são declaradamente assimétricas e egocêntricas. Segundo teóricos do capitalismo, o egoísmo é a forma mais eficaz do amor ao próximo: somente quem almeja o maior lucro possível e trabalha para alcançá-lo irá contribuir para o sucesso da ordem econômica. É claro que, para fazer isto, a ética econômica é centrada na concorrência, na competição. Então, agir contra o bem econômico do próximo pode ser visto como uma virtude!
Se reconhecemos que o poder econômico, na atualidade, engloba todos os demais poderes, inclusive o poder estatal, precisamos reconhecer que o maior e mais prioritário desafio ético de nosso tempo é o da transformação das relações de poder econômico. Neste caso, a forma concreta da cidadania deverá ser dupla: resistência contra a fome devoradora do capital e prática criativa da solidariedade econômica, que significa a inclusão do maior número de pessoas possível na atividade econômica e no desfrutar do produto econômico do país (em outras palavras, justa distribuição da renda...). Isto não implica, necessariamente, em uma revolução estrutural econômica de tipo comunista ou socialista. Implica, sim, pelo menos em uma ordenação jurídica e funcional do mercado e do capital que diminuam ao máximo possível os efeitos perversos do sistema capitalistas, e previnam o máximo possível o funcionamento de mecanismos sócio-econômicos injustos.
No âmbito das relações de poder científicas e midiáticas, bastante aparentadas entre si, na medida em que ambas disputam a verdade e a opinião pública, o eixo ético deverá ser o do discernimento, o da apropriação crítica dos produtos técnico-científicos e midiáticos, associado ao da inclusão. No caso específico da tecnologia, a lógica da solidariedade e do bem-comum exige, do ponto de vista ético, que os avanços tecnológicos não fiquem restritos apenas a quem tem dinheiro para pagar por eles. Os avanços tecnológicos precisam beneficiar toda a população, e não apenas uma elite ou um segmento privilegiado da população de um país. No caso específico da mídia, a lógica do bem-comum exige que os conteúdos e os programas veiculados não defendam unilateralmente uma concepção de sociedade ou um conjunto único de valores. A mídia precisa ser democrática, ser porta-voz da pluralidade de opiniões e valores da sociedade democrática, e não só a dos patrocinadores das emissoras. Se no caso da tecnologia é preciso ampliar o acesso aos seus benefícios, no caso da mídia é preciso ampliar o acesso à produção de programas e conteúdos e sua conseqüente difusão.
Enfim, não é possível formular uma ética política evangélica que exclua a natureza não-humana de sua abrangência e preocupação. Dentre as vítimas das relações injustas, dominadoras, de poder no mundo ocidental contemporâneo, a natureza é uma das mais afetadas, se não a mais afetada. Neste caso, o eixo ético político evangélico será o do cuidado da criação divina confiada ao ser humano para seu sustento e prazer. O cuidado deverá ser realizado tanto em dimensão macro-ecológica, quanto em dimensão micro-ecológica. Por exemplo, em âmbito micro-ecológico cada cidadã e cidadão planetário deveria cuidar do consumo da água, do uso de elementos poluentes, da preservação de jardins e praças, etc. Em âmbito macro-ecológico, proteger eco-sistemas da depredação e degradação, proteger espécies ameaças da extinção. Como em todas as outras dimensões da ética política na atualidade, a dimensão ecológica também deverá ser igualmente local e global.
No regime político em que vivemos, as relações de poder estruturadas não são apenas as relações especificamente estatais. As sociedades democráticas capitalistas contemporâneas possuem também outros tipos de relações estruturadas de poder: o poder econômico, o poder científico-tecnológico, e o poder midiático. Uma ética política evangélica também tem de formular valores e princípios apropriados para o exercício das relações de poder no âmbito dessas estruturações sociais. Na estruturação econômica capitalista, as relações de poder são declaradamente assimétricas e egocêntricas. Segundo teóricos do capitalismo, o egoísmo é a forma mais eficaz do amor ao próximo: somente quem almeja o maior lucro possível e trabalha para alcançá-lo irá contribuir para o sucesso da ordem econômica. É claro que, para fazer isto, a ética econômica é centrada na concorrência, na competição. Então, agir contra o bem econômico do próximo pode ser visto como uma virtude!
Se reconhecemos que o poder econômico, na atualidade, engloba todos os demais poderes, inclusive o poder estatal, precisamos reconhecer que o maior e mais prioritário desafio ético de nosso tempo é o da transformação das relações de poder econômico. Neste caso, a forma concreta da cidadania deverá ser dupla: resistência contra a fome devoradora do capital e prática criativa da solidariedade econômica, que significa a inclusão do maior número de pessoas possível na atividade econômica e no desfrutar do produto econômico do país (em outras palavras, justa distribuição da renda...). Isto não implica, necessariamente, em uma revolução estrutural econômica de tipo comunista ou socialista. Implica, sim, pelo menos em uma ordenação jurídica e funcional do mercado e do capital que diminuam ao máximo possível os efeitos perversos do sistema capitalistas, e previnam o máximo possível o funcionamento de mecanismos sócio-econômicos injustos.
No âmbito das relações de poder científicas e midiáticas, bastante aparentadas entre si, na medida em que ambas disputam a verdade e a opinião pública, o eixo ético deverá ser o do discernimento, o da apropriação crítica dos produtos técnico-científicos e midiáticos, associado ao da inclusão. No caso específico da tecnologia, a lógica da solidariedade e do bem-comum exige, do ponto de vista ético, que os avanços tecnológicos não fiquem restritos apenas a quem tem dinheiro para pagar por eles. Os avanços tecnológicos precisam beneficiar toda a população, e não apenas uma elite ou um segmento privilegiado da população de um país. No caso específico da mídia, a lógica do bem-comum exige que os conteúdos e os programas veiculados não defendam unilateralmente uma concepção de sociedade ou um conjunto único de valores. A mídia precisa ser democrática, ser porta-voz da pluralidade de opiniões e valores da sociedade democrática, e não só a dos patrocinadores das emissoras. Se no caso da tecnologia é preciso ampliar o acesso aos seus benefícios, no caso da mídia é preciso ampliar o acesso à produção de programas e conteúdos e sua conseqüente difusão.
Enfim, não é possível formular uma ética política evangélica que exclua a natureza não-humana de sua abrangência e preocupação. Dentre as vítimas das relações injustas, dominadoras, de poder no mundo ocidental contemporâneo, a natureza é uma das mais afetadas, se não a mais afetada. Neste caso, o eixo ético político evangélico será o do cuidado da criação divina confiada ao ser humano para seu sustento e prazer. O cuidado deverá ser realizado tanto em dimensão macro-ecológica, quanto em dimensão micro-ecológica. Por exemplo, em âmbito micro-ecológico cada cidadã e cidadão planetário deveria cuidar do consumo da água, do uso de elementos poluentes, da preservação de jardins e praças, etc. Em âmbito macro-ecológico, proteger eco-sistemas da depredação e degradação, proteger espécies ameaças da extinção. Como em todas as outras dimensões da ética política na atualidade, a dimensão ecológica também deverá ser igualmente local e global.
Moralidade e Voto
Não entrarei no mérito das questões éticas/morais sobre aborto, homossexualismo, etc. Meu tópico é o da vinculação entre posições morais de candidatos à presidência e a definição pessoal do voto por cristãos.
Começo com uma pergunta: se quem muda a legislação do país é o Congresso Nacional, e não o Presidente da República, não seria muito mais importante do que perguntar pela posição do candidato à presidência sobre questões morais, fazer uma sabatina com todos os candidados ao legislativo?
Faço uma segunda pergunta: que relação existe entre a posição de um candidato sobre um tema específico da moralidade e a possibilidade desse candidato, se eleito, realizar um governo que atenda às necessidades e interesses da justiça e do bem comum?
Terceira pergunta: se nós protestantes acreditamos que todos os seres humanos são igualmente pecadores, por que um eventual pecado específico deveria ser usado para negar o voto a uma pessoa? Que critérios teológicos usaríamos para fazer esse tipo de escolha?
Quarta pergunta: não é estranho que candidatos agora fiquem cortejando lideranças evangélicas para garantir sua eleição? Ou você acha que tal afinidade com os evangélicos é algo "de coração"?
Para encerrar: não deveríamos, como cristãos, perguntar aos candidatos a sua posição sobre justiça social, honestidade, integridade, violência, política externa, tributação ... ?
Começo com uma pergunta: se quem muda a legislação do país é o Congresso Nacional, e não o Presidente da República, não seria muito mais importante do que perguntar pela posição do candidato à presidência sobre questões morais, fazer uma sabatina com todos os candidados ao legislativo?
Faço uma segunda pergunta: que relação existe entre a posição de um candidato sobre um tema específico da moralidade e a possibilidade desse candidato, se eleito, realizar um governo que atenda às necessidades e interesses da justiça e do bem comum?
Terceira pergunta: se nós protestantes acreditamos que todos os seres humanos são igualmente pecadores, por que um eventual pecado específico deveria ser usado para negar o voto a uma pessoa? Que critérios teológicos usaríamos para fazer esse tipo de escolha?
Quarta pergunta: não é estranho que candidatos agora fiquem cortejando lideranças evangélicas para garantir sua eleição? Ou você acha que tal afinidade com os evangélicos é algo "de coração"?
Para encerrar: não deveríamos, como cristãos, perguntar aos candidatos a sua posição sobre justiça social, honestidade, integridade, violência, política externa, tributação ... ?
domingo, 26 de setembro de 2010
Evangélicos - Em busca de inteligência política
Eu não queria mais falar sobre eleições e política neste ano. Mas não é possível calar. Pronunciamentos de líderes evangélicos sobre a política tem me causado revolta e assombro. Não me assombro com pronunciamentos de pseudo-evangélicos, de líderes politiqueiros, dinheiristas e chefes de igrejas-empresas. Revolto-me com pronunciamentos de líderes evangélicos honestos, cristãos comprometidos com a justiça, com a melhoria da vida humana, gente de caráter e testemunho dignos.
De pessoas assim não se poderia esperar pronunciamentos absolutamente néscios, sem um pingo de sabedoria, sem o mínimo de discernimento espiritual que se deveria esperar de líderes dignos. Não conheço todos os pronunciantes, conheço alguns, dentre esses há gente que eu admiro e respeito, embora sempre tenha me preocupado com a falta de clareza nos posicionamentos políticos.
A clareza agora é cristalina! Uma clara confusão entre moralismo e medo, por um lado, e ignorância política por outro. Fizeram-me lembrar de um artigo absolutamente inútil que Robinson Cavalcanti publicou na Ultimato, há meses, denunciando uma suposta conspiração gay e atéia contra a igreja. Contestei tal artigo, mas seu autor não se dignou a me responder. Recebi uma resposta de um líder evangélico, leigo, que dizia mais ou menos o seguinte: "o artigo pode não ter nenhuma prova, nehuma evidência, mas tem razão".
Só posso fazer um apelo: a meu grande amigo e um de meus padrinhos de casamento - retrate-se urgentemente. Voce não merecia estar sendo lembrado por um vídeo esdrúxulo em que demoniza partidos políticos e se vangloria de algo que não passa de falta de conhecimento sobre política e de ausência de discernimento e sabedoria. Voce é muito melhor do que esse vídeo!
Reforço o apelo: a pastores, pastoras, líderes leigos evangélicos honestos - retratem-se. Aprendam. Busquem inteligência política.
Não podemos mais confundir moralismo com medo, passividade com neutralidade política. Não há neutralidade em política. Não há ausência de política no exercício do poder religioso. Não se confundam. não se enganem. As pregações pastorais são, sempre, políticas. São políticas por que exercícios de poder. Só quem não saiu do jardim de infância ainda pensa que política só tem a ver com partidos e eleições. Política tem a ver com o exercício do poder, em todas as relações, em todos os níveis da vida social. Pregação do evangelho é, sempre, política - posto que anúncio do Reino de Deus - poder que questiona todo e qualquer exercício dominador do poder, por pessoas, partidos, leis e instituições.
Evangélicos, aprendamos a viver a integralidade da missão. Não basta afirmar "missão integral", há que se aprender a integralidade da missão - e isto exige inteligência política.
De pessoas assim não se poderia esperar pronunciamentos absolutamente néscios, sem um pingo de sabedoria, sem o mínimo de discernimento espiritual que se deveria esperar de líderes dignos. Não conheço todos os pronunciantes, conheço alguns, dentre esses há gente que eu admiro e respeito, embora sempre tenha me preocupado com a falta de clareza nos posicionamentos políticos.
A clareza agora é cristalina! Uma clara confusão entre moralismo e medo, por um lado, e ignorância política por outro. Fizeram-me lembrar de um artigo absolutamente inútil que Robinson Cavalcanti publicou na Ultimato, há meses, denunciando uma suposta conspiração gay e atéia contra a igreja. Contestei tal artigo, mas seu autor não se dignou a me responder. Recebi uma resposta de um líder evangélico, leigo, que dizia mais ou menos o seguinte: "o artigo pode não ter nenhuma prova, nehuma evidência, mas tem razão".
Só posso fazer um apelo: a meu grande amigo e um de meus padrinhos de casamento - retrate-se urgentemente. Voce não merecia estar sendo lembrado por um vídeo esdrúxulo em que demoniza partidos políticos e se vangloria de algo que não passa de falta de conhecimento sobre política e de ausência de discernimento e sabedoria. Voce é muito melhor do que esse vídeo!
Reforço o apelo: a pastores, pastoras, líderes leigos evangélicos honestos - retratem-se. Aprendam. Busquem inteligência política.
Não podemos mais confundir moralismo com medo, passividade com neutralidade política. Não há neutralidade em política. Não há ausência de política no exercício do poder religioso. Não se confundam. não se enganem. As pregações pastorais são, sempre, políticas. São políticas por que exercícios de poder. Só quem não saiu do jardim de infância ainda pensa que política só tem a ver com partidos e eleições. Política tem a ver com o exercício do poder, em todas as relações, em todos os níveis da vida social. Pregação do evangelho é, sempre, política - posto que anúncio do Reino de Deus - poder que questiona todo e qualquer exercício dominador do poder, por pessoas, partidos, leis e instituições.
Evangélicos, aprendamos a viver a integralidade da missão. Não basta afirmar "missão integral", há que se aprender a integralidade da missão - e isto exige inteligência política.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
O olfato de YHWH
No mundo moderno, a filosofia e a ciência subordinaram o olfato (juntamente com o paladar e o tato) à visão e audição, posto que aquele pouco podia oferecer à construção de conceitos, comparativamente aos sentidos da visão e da audição. Montaigne chegou a afirmar (injustificadamente) que um mundo ideal é um mundo inodoro, posto que seria o mundo puro das crianças.
No mundo contemporâneo, o olfato volta a ocupar lugar de destaque na reflexão filosófica e científica, em função de suas aplicações práticas: “Nos dois últimos séculos os odores ganham espaço de investigação e a cultura do corpo desodorizado, motiva a produção imensurável de produtos que mascaram os odores do corpo: desodorantes, cremes, sabões, pós e pomadas. Surge uma nova apropriação do sentido do olfato pelo mercado, através da comercialização dos odores, com produtos médico/sanitários amplamente utilizados pela enfermagem. Incluso ao controle dos odores do corpo, se promovem o diagnóstico, tratamento e vigilância dos odores ambientais em todos os espaços da atividade humana, públicos ou privados.” (ESTÉTICA DOS ODORES: O SENTIDO DO OLFATO E A ENFERMAGEM)
O culto ao corpo agradavelmente aromatizado é profundamente ambíguo. Se, por um lado, exalta a beleza e o prazer; por outro, oculta sob o aroma de perfumes prazerosos o pútrido cheiro da morte que se estende às pessoas excluídas da vida consumista. Por isso, recuperar a discussão bíblica sobre o olfato é importante para a construção de uma teologia relevante para a humanidade contemporânea. Segue um início sugestivo dessa recuperação.
Um aroma ambíguo
Em Êxodo, Levítico e Números é usada 37 vezes a expressão “cheiro suave” referindo-se aos sacrifícios ofertados a Deus, por exemplo: Lv 6:21 “Numa assadeira se fará com azeite; bem embebida a trarás; em pedaços cozidos oferecerás a oferta de cereais por cheiro suave ao Senhor”. O termo incenso é usado 53 vezes nesses mesmos livros, indicando também o aroma que deveria permanecer no templo, especialmente durante os sacrifícios. Em Deuteronômio, porém, o sacrifício não é descrito como “cheiro suave” e somente uma vez é usado o termo “incenso” (33,10). No próprio Pentateuco encontramos a tensão que a visão sacrificial oferecia à reflexão teológica vétero-israelita. Essa tensão está presente sobremodo na tradição profética.
A ambigüidade do odor dos sacrifícios e do incenso está em que eles podem ser um péssimo cheiro perante o Senhor, como no caso da rebelião de Corá em Números 16: “35 Então saiu fogo do Senhor, e consumiu os duzentos e cinqüenta homens que ofereciam o incenso. 36 Então disse o Senhor a Moisés: 37 Dize a Eleazar, filho de Arão, o sacerdote, que tire os incensários do meio do incêndio; e espalha tu o fogo longe; porque se tornaram santos 38 os incensários daqueles que pecaram contra as suas almas; deles se façam chapas, de obra batida, para cobertura do altar; porquanto os trouxeram perante o Senhor, por isso se tornaram santos; e serão por sinal aos filhos de Israel. 39 Eleazar, pois, o sacerdote, tomou os incensários de bronze, os quais aqueles que foram queimados tinham oferecido; e os converteram em chapas para cobertura do altar, 40 para servir de memória aos filhos de Israel, a fim de que nenhum estranho, ninguém que não seja da descendência de Arão, se chegue para queimar incenso perante o Senhor, para que não seja como Corá e a sua companhia; conforme o Senhor dissera a Eleazar por intermédio de Moisés.”
A mesma valoração negativa se faz quando os sacrifícios e o incenso são, ou ofertados a outros deuses, ou encobrem a injustiça. Então, tornam-se abomináveis a YHWH, por exemplo:
(a) Ezequiel 6:13 Então sabereis que eu sou o Senhor, quando os seus mortos estiverem estendidos no meio dos seus ídolos, em redor dos seus altares, em todo outeiro alto, em todos os cumes dos montes, e debaixo de toda árvore verde, e debaixo de todo carvalho frondoso, lugares onde ofereciam suave cheiro a todos os seus ídolos;
(b) Isaías 1:13 Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação. As luas novas, os sábados, e a convocação de assembléias ... não posso suportar a iniqüidade e o ajuntamento solene!
(c) 2 Reis 17:11 (Israel) “... queimaram incenso em todos os altos, como as nações que o Senhor expulsara de diante deles; cometeram ações iníquas, provocando à ira o Senhor”; e 2 Reis 23:5 (Judá) “Destituiu os sacerdotes idólatras que os reis de Judá haviam constituído para queimarem incenso sobre os altos nas cidades de Judá, e ao redor de Jerusalém, como também os que queimavam incenso a Baal, ao sol, à lua, aos planetas, e a todo o exército do céu”.
Em oposição ao regime sacrificial, o Salmo 141:2 “Suba a minha oração, como incenso, diante de ti, e seja o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde!” apresenta a oração como um perfume que sobe até Deus e o comove a agir favoravelmente!
Estes exemplos mostram que já na discussão teológica do antigo Israel o acesso sacrificial a Deus era questionado. Quando o autor de Hebreus afirma que o sacrifício de Jesus é definitivo e elimina a lógica sacrificial enquanto tal, está dando continuidade a este tipo de reflexão profética sobre a inutilidade do sacrifício. A persistência da lógica sacrificial no Cristianismo revela uma inconsistência nas práticas cristãs. Inconsistência que tem servido para a manutenção de situações de injustiça e opressão, legitimadas pela crença de que o sacrifício é um pequeno preço a ser pago para alcançar a vida eterna ou, na teologia da prosperidade, as bênçãos de Deus no presente. O Deus de judeus e cristãos, porém, não necessita de sacrifícios e abomina a lógica sacrificial. Autores como René Girard e Franz Hinkelammert, críticos da lógica sacrificial, mereceriam ser mais estudados em nossos dias posto que são por demais relevantes em sua celebração acadêmica da vida!
No mundo contemporâneo, o olfato volta a ocupar lugar de destaque na reflexão filosófica e científica, em função de suas aplicações práticas: “Nos dois últimos séculos os odores ganham espaço de investigação e a cultura do corpo desodorizado, motiva a produção imensurável de produtos que mascaram os odores do corpo: desodorantes, cremes, sabões, pós e pomadas. Surge uma nova apropriação do sentido do olfato pelo mercado, através da comercialização dos odores, com produtos médico/sanitários amplamente utilizados pela enfermagem. Incluso ao controle dos odores do corpo, se promovem o diagnóstico, tratamento e vigilância dos odores ambientais em todos os espaços da atividade humana, públicos ou privados.” (ESTÉTICA DOS ODORES: O SENTIDO DO OLFATO E A ENFERMAGEM)
O culto ao corpo agradavelmente aromatizado é profundamente ambíguo. Se, por um lado, exalta a beleza e o prazer; por outro, oculta sob o aroma de perfumes prazerosos o pútrido cheiro da morte que se estende às pessoas excluídas da vida consumista. Por isso, recuperar a discussão bíblica sobre o olfato é importante para a construção de uma teologia relevante para a humanidade contemporânea. Segue um início sugestivo dessa recuperação.
Um aroma ambíguo
Em Êxodo, Levítico e Números é usada 37 vezes a expressão “cheiro suave” referindo-se aos sacrifícios ofertados a Deus, por exemplo: Lv 6:21 “Numa assadeira se fará com azeite; bem embebida a trarás; em pedaços cozidos oferecerás a oferta de cereais por cheiro suave ao Senhor”. O termo incenso é usado 53 vezes nesses mesmos livros, indicando também o aroma que deveria permanecer no templo, especialmente durante os sacrifícios. Em Deuteronômio, porém, o sacrifício não é descrito como “cheiro suave” e somente uma vez é usado o termo “incenso” (33,10). No próprio Pentateuco encontramos a tensão que a visão sacrificial oferecia à reflexão teológica vétero-israelita. Essa tensão está presente sobremodo na tradição profética.
A ambigüidade do odor dos sacrifícios e do incenso está em que eles podem ser um péssimo cheiro perante o Senhor, como no caso da rebelião de Corá em Números 16: “35 Então saiu fogo do Senhor, e consumiu os duzentos e cinqüenta homens que ofereciam o incenso. 36 Então disse o Senhor a Moisés: 37 Dize a Eleazar, filho de Arão, o sacerdote, que tire os incensários do meio do incêndio; e espalha tu o fogo longe; porque se tornaram santos 38 os incensários daqueles que pecaram contra as suas almas; deles se façam chapas, de obra batida, para cobertura do altar; porquanto os trouxeram perante o Senhor, por isso se tornaram santos; e serão por sinal aos filhos de Israel. 39 Eleazar, pois, o sacerdote, tomou os incensários de bronze, os quais aqueles que foram queimados tinham oferecido; e os converteram em chapas para cobertura do altar, 40 para servir de memória aos filhos de Israel, a fim de que nenhum estranho, ninguém que não seja da descendência de Arão, se chegue para queimar incenso perante o Senhor, para que não seja como Corá e a sua companhia; conforme o Senhor dissera a Eleazar por intermédio de Moisés.”
A mesma valoração negativa se faz quando os sacrifícios e o incenso são, ou ofertados a outros deuses, ou encobrem a injustiça. Então, tornam-se abomináveis a YHWH, por exemplo:
(a) Ezequiel 6:13 Então sabereis que eu sou o Senhor, quando os seus mortos estiverem estendidos no meio dos seus ídolos, em redor dos seus altares, em todo outeiro alto, em todos os cumes dos montes, e debaixo de toda árvore verde, e debaixo de todo carvalho frondoso, lugares onde ofereciam suave cheiro a todos os seus ídolos;
(b) Isaías 1:13 Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação. As luas novas, os sábados, e a convocação de assembléias ... não posso suportar a iniqüidade e o ajuntamento solene!
(c) 2 Reis 17:11 (Israel) “... queimaram incenso em todos os altos, como as nações que o Senhor expulsara de diante deles; cometeram ações iníquas, provocando à ira o Senhor”; e 2 Reis 23:5 (Judá) “Destituiu os sacerdotes idólatras que os reis de Judá haviam constituído para queimarem incenso sobre os altos nas cidades de Judá, e ao redor de Jerusalém, como também os que queimavam incenso a Baal, ao sol, à lua, aos planetas, e a todo o exército do céu”.
Em oposição ao regime sacrificial, o Salmo 141:2 “Suba a minha oração, como incenso, diante de ti, e seja o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde!” apresenta a oração como um perfume que sobe até Deus e o comove a agir favoravelmente!
Estes exemplos mostram que já na discussão teológica do antigo Israel o acesso sacrificial a Deus era questionado. Quando o autor de Hebreus afirma que o sacrifício de Jesus é definitivo e elimina a lógica sacrificial enquanto tal, está dando continuidade a este tipo de reflexão profética sobre a inutilidade do sacrifício. A persistência da lógica sacrificial no Cristianismo revela uma inconsistência nas práticas cristãs. Inconsistência que tem servido para a manutenção de situações de injustiça e opressão, legitimadas pela crença de que o sacrifício é um pequeno preço a ser pago para alcançar a vida eterna ou, na teologia da prosperidade, as bênçãos de Deus no presente. O Deus de judeus e cristãos, porém, não necessita de sacrifícios e abomina a lógica sacrificial. Autores como René Girard e Franz Hinkelammert, críticos da lógica sacrificial, mereceriam ser mais estudados em nossos dias posto que são por demais relevantes em sua celebração acadêmica da vida!
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Deus Imprevisivelmente Fiel
No post anterior destaquei a imprevisibilidade de Deus. No testemunho bíblico, Deus é retratado como imprevisível, mas fiel - imprevisivelmente fiel. Fiel é a pessoa em quem se pode confiar, de quem se pode depender quando necessário. A fidelidade é a permanência, em uma pessoa, das ações e dos valores que permitem a ela, e aquelas com quem ela se relaciona, se re-conhecer e ser re-conhecida. A fidelidade é a permanência na mudança, no devir constante da construção e reconstrução da identidade pessoal, social, cultural, política, religiosa. A fidelidade é a marca dos relacionamentos confiáveis, que dão segurança, estabilidade em meio à incerteza e imprevisibilidade da vida. Segundo Sponville, a fidelidade é a virtude da memória: “É este o dever da memória: piedade e gratidão pelo passado. O duro dever, o exigente dever, o imprescritível dever de ser fiel!” E se fidelidade é o dever da memória, reconhecemos a fidelidade de Javé em sua memória: pois Javé se lembra de seus compromissos, mas se esquece dos pecados de seu povo! Memória que não é só re-viver o passado, mas também re-significá-lo, transformando-o no presente e futuro.
Fidelidade é virtude relacional, e a sua validade depende do objeto de sua atração: "a fidelidade só deve dirigir-se ao que vale, e proporcionalmente – se ouso dizer, já que se trata de grandezas por natureza não-quantificáveis – ao valor do que vale. Fidelidade primeiro ao sofrimento, à coragem desinteressada, ao amor...” Embora não se referindo a Deus, o texto de Sponville é fiel ao caráter de Javé: deus fiel ao seu povo que sofre (Ele é o Deus que ouve o clamor), fiel à salvação de seu povo (desce e liberta corajosamente se solidarizando com o povo que sofre), fiel à aliança que estabelece com os seus (hesed divina, amor misericordioso e fiel que sustenta a relação familiar de Javé com seu povo).
Em meio às vicissitudes da história, Javé permanece fiel, e porque Ele é fiel, também "o justo viverá por sua fidelidade” (Hc 2,4). Javé é fiel sim, mas não previsível. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, os pensamentos de Javé não são os nossos pensamentos (Is 55,8), por isso somos incapazes de capturar a Sua fidelidade e domesticar Javé conforme nossa imagem e semelhança. No entanto, a fidelidade de Javé não é sinônimo de previsibilidade. Javé é imprevisivelmente fiel: teimoso, se preferirmos um adjetivo menos polido; zeloso, se escolhermos um adjetivo extraído das Escrituras. O povo de Israel celebrava a fidelidade de Javé, mas vez após vez, foi confundido por Javé para aprender que não poderia controlar o seu deus como faziam outros povos do Antigo Oriente. Para aprender que somente Javé é Deus, somente Ele mesmo é Javé – deus e não ser humano.
Fidelidade é virtude relacional, e a sua validade depende do objeto de sua atração: "a fidelidade só deve dirigir-se ao que vale, e proporcionalmente – se ouso dizer, já que se trata de grandezas por natureza não-quantificáveis – ao valor do que vale. Fidelidade primeiro ao sofrimento, à coragem desinteressada, ao amor...” Embora não se referindo a Deus, o texto de Sponville é fiel ao caráter de Javé: deus fiel ao seu povo que sofre (Ele é o Deus que ouve o clamor), fiel à salvação de seu povo (desce e liberta corajosamente se solidarizando com o povo que sofre), fiel à aliança que estabelece com os seus (hesed divina, amor misericordioso e fiel que sustenta a relação familiar de Javé com seu povo).
Em meio às vicissitudes da história, Javé permanece fiel, e porque Ele é fiel, também "o justo viverá por sua fidelidade” (Hc 2,4). Javé é fiel sim, mas não previsível. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, os pensamentos de Javé não são os nossos pensamentos (Is 55,8), por isso somos incapazes de capturar a Sua fidelidade e domesticar Javé conforme nossa imagem e semelhança. No entanto, a fidelidade de Javé não é sinônimo de previsibilidade. Javé é imprevisivelmente fiel: teimoso, se preferirmos um adjetivo menos polido; zeloso, se escolhermos um adjetivo extraído das Escrituras. O povo de Israel celebrava a fidelidade de Javé, mas vez após vez, foi confundido por Javé para aprender que não poderia controlar o seu deus como faziam outros povos do Antigo Oriente. Para aprender que somente Javé é Deus, somente Ele mesmo é Javé – deus e não ser humano.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
O Deus Imprevisível
Apesar de ortodoxamente afirmarmos que Deus é transcendente, muita vez nossa teologia faz de Deus um imanete e previsível mestre-cerimônias. Sempre que me pego escorregando para esse lamaçal, me lembro da imprevisibilidade de Deus.
A imprevisibilidade de Deus é a salvaguarda de sua liberdade, é a proteção contra a idolatração de Deus, sua redução a um mero gênio da lâmpada, a um mero guardião de interesses pessoais ou nacionais. Houve quem tentasse aprisionar Deus em uma lógica sapiencial duvidosa, contra a qual um livro como o de Jó se insurgiu. Afinal de contas, quem foi o conselheiro de Javé na criação do mundo? Como prever as ações de alguém que é tão sublime e exaltado? De um deus que se mantém oculto, mesmo quando revelado (Is 45,15)? O mistério é característico de Deus, que não age sem revelar seus segredos aos seus servos (Am 3,7), e que tornou plenamente manifesto o mistério da Sua graça fiel em Jesus Cristo.
Deus é imprevisível, mas não arbitrário. Fielmente imprevisível, a sua liberdade não O move de Seus propósitos amorosos, de Seus compromissos solenes. Fidelidade imprevisível, lembrada após o dilúvio, e simbolizada pelo arco da aliança, na bela linguagem mitopoética de Gn 9,8-19. Imprevisibilidade fiel, daquele que jamais se esquece de seu amor, renovando a cada manhã a sua misericórdia, a sua solidariedade para com as pessoas que sofrem (Lm 3,22-23), pois "grande é a tua fidelidade”!
Imprevisível, mas não volúvel. Deus não troca de amores como quem troca de roupa a cada novo dia. Imprevisivelmente fiel, Ele/a é amante constante, jamais se afastando de quem precisa de sua amorosa companhia. Amante fiel de toda a sua criação, Deus não se retira, não se retrai, não a abandona à sua própria sorte. Amante fiel de toda a humanidade que clama, apegou-se a Israel, a ele se afeiçoou, por causa de Abraão, e de Abraão se afeiçoou por causa de toda a humanidade (cf. Dt 7,7-11; Gn 12,1ss). Amante fiel, enviou seu filho amado ao mundo ...
Imprevisível como a vida, imprevisível como o cosmos. Imprevisível como Ele mesmo, Deus é fiel e nos acolhe em sua família, em seu círculo de amizades, de relacionamentos - transcendendo, aí sim, as barreiras de raça, cor, sexo, classe, educação ...
Imprevisível, Deus permanece fiel a toda a criação. O Senhor, acima de tudo, permanece fiel a Si mesmo. Amante e amigo, a sua fidelidade é imprevisivelmente constante e firme. Imprevisivelmente fiel, o compromisso solidário de Deus-Mãe de todos nós se renova a cada instante, renovando conjuntamente toda a sua criação (cf. Is 43,19). Fielmente imprevisível, Deus jamais se rende à mesmice, ao marasmo, ao tradicionalismo, à paralisia do próprio medo. Fielmente imprevisível, faz-se notar por sua coragem de viver entre nós, de habitar em Sua criação, de descer para nos fazer subir (cf. Êx 3,6-10)ao encontro de sua presença cuidadora.
A imprevisibilidade de Deus é a salvaguarda de sua liberdade, é a proteção contra a idolatração de Deus, sua redução a um mero gênio da lâmpada, a um mero guardião de interesses pessoais ou nacionais. Houve quem tentasse aprisionar Deus em uma lógica sapiencial duvidosa, contra a qual um livro como o de Jó se insurgiu. Afinal de contas, quem foi o conselheiro de Javé na criação do mundo? Como prever as ações de alguém que é tão sublime e exaltado? De um deus que se mantém oculto, mesmo quando revelado (Is 45,15)? O mistério é característico de Deus, que não age sem revelar seus segredos aos seus servos (Am 3,7), e que tornou plenamente manifesto o mistério da Sua graça fiel em Jesus Cristo.
Deus é imprevisível, mas não arbitrário. Fielmente imprevisível, a sua liberdade não O move de Seus propósitos amorosos, de Seus compromissos solenes. Fidelidade imprevisível, lembrada após o dilúvio, e simbolizada pelo arco da aliança, na bela linguagem mitopoética de Gn 9,8-19. Imprevisibilidade fiel, daquele que jamais se esquece de seu amor, renovando a cada manhã a sua misericórdia, a sua solidariedade para com as pessoas que sofrem (Lm 3,22-23), pois "grande é a tua fidelidade”!
Imprevisível, mas não volúvel. Deus não troca de amores como quem troca de roupa a cada novo dia. Imprevisivelmente fiel, Ele/a é amante constante, jamais se afastando de quem precisa de sua amorosa companhia. Amante fiel de toda a sua criação, Deus não se retira, não se retrai, não a abandona à sua própria sorte. Amante fiel de toda a humanidade que clama, apegou-se a Israel, a ele se afeiçoou, por causa de Abraão, e de Abraão se afeiçoou por causa de toda a humanidade (cf. Dt 7,7-11; Gn 12,1ss). Amante fiel, enviou seu filho amado ao mundo ...
Imprevisível como a vida, imprevisível como o cosmos. Imprevisível como Ele mesmo, Deus é fiel e nos acolhe em sua família, em seu círculo de amizades, de relacionamentos - transcendendo, aí sim, as barreiras de raça, cor, sexo, classe, educação ...
Imprevisível, Deus permanece fiel a toda a criação. O Senhor, acima de tudo, permanece fiel a Si mesmo. Amante e amigo, a sua fidelidade é imprevisivelmente constante e firme. Imprevisivelmente fiel, o compromisso solidário de Deus-Mãe de todos nós se renova a cada instante, renovando conjuntamente toda a sua criação (cf. Is 43,19). Fielmente imprevisível, Deus jamais se rende à mesmice, ao marasmo, ao tradicionalismo, à paralisia do próprio medo. Fielmente imprevisível, faz-se notar por sua coragem de viver entre nós, de habitar em Sua criação, de descer para nos fazer subir (cf. Êx 3,6-10)ao encontro de sua presença cuidadora.
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Recesso Forçado
Pessoal,
voltarei logo a bloguear. Nas últimas semanas tenho tido de atender a prazos e demandas profissionais que fogem ao meu controle, diminuindo ainda mais o tempinho que tenho para o blog.
Abs
voltarei logo a bloguear. Nas últimas semanas tenho tido de atender a prazos e demandas profissionais que fogem ao meu controle, diminuindo ainda mais o tempinho que tenho para o blog.
Abs
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Teologia: ciência de Deus? Conhecimento de Deus? Saber de Deus?
Supostamente este é um blog teológico. Então, que é teologia, afinal de contas? É hora de jogar um jogo, o jogo das definições, das delimitações, das demarcações - melhor ainda, um jogo de desconstrução. Desconstruir é o alter-ego do de-finir (estabelecer o fim), é um in-finir, ou seja, um não-estabelecer-o-fim. Joguemos.
Na Idade Média, preconceituosamente chamada de Idade das Trevas, a definição mais comum da teologia era a de "ciência de Deus". Ciência era um conhecimento certo, verdadeiro, indubitável. Teologia era a ciência de Deus, posto que era a colocação em conceitos da revelação do próprio Deus com o suporte da razão. Por isso, era a rainha das ciências, posto que a ciência mais verdadeira das verdadeiras ciências. Até a filosofia foi colocada sob a teologia (ancilla theologiae), serva da teologia, a senhora da Verdade.
Na Modernidade, primeiro a Filosofia, depois a Ciência (ciências), destronaram a teologia. Ela deixa de ser definida como ciência, e passa a ser conhecimento de Deus. Uma espécie de "ciência de segunda categoria", pois à teologia faltam os principais elementos caracterizadores da Verdadeira Ciência: empiria, replicação da experiência, matematização e modelização, predizibilidade e, mais recentemente, falseabilidade. Se por um tempo a teologia tornou-se ancilla philosophiae, enfim ela se torna inútil, atópica - ou seja, sem lugar na Univer(si)dade, no lugar onde a única Verdade é constituída - o universo da Ciência com sua pretensão de uma teoria única de tudo - a universidade-universalidade-univerdade.
É claro, teólogos e instituições eclesiásticas espernearam. Até hoje há os que tentam refazer o percurso e recolocar a teologia no lugar da Ciência. Quase ninguém mais a pensa como rainha das ciências, mas ainda são muitas as pessoas e instituições que desejam realocar a teologia na Universidade-universalidade-univerdade da Ciência certa e verdadeira. Louvável atitude. Dignificante busca. Salvar a teologia do cativeiro do conhecimento e ressituá-la na liberdade da Ciência.
Digna e louvável mas, a meu ver, equivocada. Prefiro de-finir desconstrutivamente a teologia como um saber. Saber, que tem a ver com sabor, gosto, paladar, prazer. Saber, que tem a ver com sabedoria, saber-viver, viver-bem. Saber, que tem a ver com bem-dizer, bendizer, dizer para-bem. Saber não é nem conhecimento, nem Ciência. Também não é um meio-termo entre conhecimento e Ciência. É, sem-o-ser, anti-conhecimento e anti-Ciência. É, sem-o-ser, mais-que-conhecimento e mais-que-Ciência, menos-que-conhecimento e menos-que-Ciência.
Teologia é um saber que não se encanta com sua própria cria - conceitos, leis, normas, teorias. É um saber que se encanta com o seu caminho - "sabeirar" (viver-saber), saborear, "sabedoriar". Saber-viver-benfazejamente. Não é, como a filosofia, saber-viver-bem, embora também ande nos caminhos da filosofia. Não é, como a ciência, saber-fazer-direito, embora também navegue em águas científicas. Teologia é um saber-fazer-bem-a-alguém. Um saber, para cristãs e cristãos, cujo modelo foi o Messias Jesus, alguém que soube-fazer-bem-a-quem-nem-sempre-recebia-bem-o-bem-feito. Saber-sabor-prazer-sabedoria. Louca-sabedoria, porém, mais sábia que a sabedoria da Filosofia ou da Ciência. Mais sábia, por que sabe que é saber-imperfeito-incompleto-limitado-parcial-temporário-transitório-transeunte.
Deve ser por isso que muita gente não gosta de teologia. Deve ser por isso que muitos teólogos almejam fazer Teologia-Ciência. O saber teológico exige que a gente aprenda a viver no caminho. Teologia é saber navegante, que só aporta para poder voltar a navegar. Aproprio-me infielmente das palavras de Fernando Pessoa:
"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar".
Na Idade Média, preconceituosamente chamada de Idade das Trevas, a definição mais comum da teologia era a de "ciência de Deus". Ciência era um conhecimento certo, verdadeiro, indubitável. Teologia era a ciência de Deus, posto que era a colocação em conceitos da revelação do próprio Deus com o suporte da razão. Por isso, era a rainha das ciências, posto que a ciência mais verdadeira das verdadeiras ciências. Até a filosofia foi colocada sob a teologia (ancilla theologiae), serva da teologia, a senhora da Verdade.
Na Modernidade, primeiro a Filosofia, depois a Ciência (ciências), destronaram a teologia. Ela deixa de ser definida como ciência, e passa a ser conhecimento de Deus. Uma espécie de "ciência de segunda categoria", pois à teologia faltam os principais elementos caracterizadores da Verdadeira Ciência: empiria, replicação da experiência, matematização e modelização, predizibilidade e, mais recentemente, falseabilidade. Se por um tempo a teologia tornou-se ancilla philosophiae, enfim ela se torna inútil, atópica - ou seja, sem lugar na Univer(si)dade, no lugar onde a única Verdade é constituída - o universo da Ciência com sua pretensão de uma teoria única de tudo - a universidade-universalidade-univerdade.
É claro, teólogos e instituições eclesiásticas espernearam. Até hoje há os que tentam refazer o percurso e recolocar a teologia no lugar da Ciência. Quase ninguém mais a pensa como rainha das ciências, mas ainda são muitas as pessoas e instituições que desejam realocar a teologia na Universidade-universalidade-univerdade da Ciência certa e verdadeira. Louvável atitude. Dignificante busca. Salvar a teologia do cativeiro do conhecimento e ressituá-la na liberdade da Ciência.
Digna e louvável mas, a meu ver, equivocada. Prefiro de-finir desconstrutivamente a teologia como um saber. Saber, que tem a ver com sabor, gosto, paladar, prazer. Saber, que tem a ver com sabedoria, saber-viver, viver-bem. Saber, que tem a ver com bem-dizer, bendizer, dizer para-bem. Saber não é nem conhecimento, nem Ciência. Também não é um meio-termo entre conhecimento e Ciência. É, sem-o-ser, anti-conhecimento e anti-Ciência. É, sem-o-ser, mais-que-conhecimento e mais-que-Ciência, menos-que-conhecimento e menos-que-Ciência.
Teologia é um saber que não se encanta com sua própria cria - conceitos, leis, normas, teorias. É um saber que se encanta com o seu caminho - "sabeirar" (viver-saber), saborear, "sabedoriar". Saber-viver-benfazejamente. Não é, como a filosofia, saber-viver-bem, embora também ande nos caminhos da filosofia. Não é, como a ciência, saber-fazer-direito, embora também navegue em águas científicas. Teologia é um saber-fazer-bem-a-alguém. Um saber, para cristãs e cristãos, cujo modelo foi o Messias Jesus, alguém que soube-fazer-bem-a-quem-nem-sempre-recebia-bem-o-bem-feito. Saber-sabor-prazer-sabedoria. Louca-sabedoria, porém, mais sábia que a sabedoria da Filosofia ou da Ciência. Mais sábia, por que sabe que é saber-imperfeito-incompleto-limitado-parcial-temporário-transitório-transeunte.
Deve ser por isso que muita gente não gosta de teologia. Deve ser por isso que muitos teólogos almejam fazer Teologia-Ciência. O saber teológico exige que a gente aprenda a viver no caminho. Teologia é saber navegante, que só aporta para poder voltar a navegar. Aproprio-me infielmente das palavras de Fernando Pessoa:
"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar".
sexta-feira, 16 de julho de 2010
"Xemá Israel", Dt 6,4-9
"Ouve, ó Israel: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Portanto, amarás a YHWH teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as inculcarás aos teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando em teu caminho, deitado e de pé. Tu as atarás também à tua mão como um sinal, e serão como um frontal entre teus olhos; tu as escreverás nos umbrais da tua casa e nas tuas portas." Dt 6,4-9
No primeiro verso do texto encontramos a afirmação fundamental da fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente mantive a forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo entre o sujeito e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas interpretações e traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes dimensões da fé deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel, no sentido da exclusividade, ou seja, independentemente de quantos deuses tenham existido ou possam existir, para Israel há somente um Deus – YHWH – somente a Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel, somente YHWH é a fonte de vida para Israel; (b) YHWH é um Deus pluralmente singular, no sentido de que Ele não precisa de outros deuses para repartir as tarefas (no pensamento vétero-oriental, os deuses tinham funções especializadas, por isso era necessário crer em vários deuses que cumpriam essas diferentes tarefas, tais como guerrear, fazer chover, curar doenças, etc.). Como Deus pluralmente singular, YHWH é suficiente, Israel não necessita de nenhum outro Deus para atender as suas necessidades – ou seja, YHWH não é um deus especialista, parcial; e (c) YHWH é o único Deus não feito por mãos humanas, os demais deuses são ídolos, fabricação de mãos humanas e não são capazes de agir. O aniconismo da fé israelita não se restringia apenas à ausência do uso de imagens da divindade, mas era expressão da sua crença na exclusividade e singularidade de YHWH. Por outro lado, a expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre o Senhor e o povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo, fidelidade e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel.
Conseqüentemente, o povo que faz aliança com o fiel e único Deus, é convocado a construir sua identidade a partir do amor a Deus. A escolha do verbo amar no livro do Deuteronômio tem significado muito especial. O livro do Deuteronômio adota e adapta o estilo dos tratados internacionais assírios. Nesses tratados, o rei de um país mais fraco que se associava ao rei de um país mais forte assumia o compromisso de amar o rei mais poderoso. Semelhantemente, os juramentos assírios feitos por oficiais que iniciavam seu serviço ao rei assírio faziam a mesma exigência: o oficial do rei se comprometia a amar ao rei. Assim, ao convocar Israel a amar a YHWH, o Deuteronômio não só destaca a relação de aliança entre Deus e o povo, como afirma que YHWH é o único rei de Israel, o único rei a quem Israel deveria ser fiel, o único rei a quem deveria servir. A repetição da palavra todo(a) e a soma dos termos coração, alma e força indicam que o compromisso de Israel com YHWH deveria ser integral. Assim como YHWH é um, o povo de Israel deveria ser unido em um único propósito: ser fiel a YHWH. O coração do israelita não poderia se dividir entre seu Deus e outros deuses, entre YHWH e outras lealdades.
Dessa forma, as palavras de YHWH, sua instrução (torá), deveriam ocupar o pensamento do israelita o tempo todo, e deveriam ser ensinadas de geração em geração. Eis aqui a peculiaridade deuteronômica em relação à teologia sacerdotal – ao invés de enfatizar a santidade e a pureza, mantidas através da participação na vida litúrgica no Templo, a teologia deuteronômica enfatiza o estudo das palavras de YHWH e sua prática na vida cotidiana, como demonstração da fidelidade de Israel ao seu único Deus. Todo o tempo, todas as dimensões da vida, todas as gerações do povo de Deus são convocadas à meditação, estudo e prática da Torá de YHWH. Se viver dessa maneira, Israel dará testemunho da singularidade e exclusividade de YHWH a todos os povos.
No primeiro verso do texto encontramos a afirmação fundamental da fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente mantive a forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo entre o sujeito e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas interpretações e traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes dimensões da fé deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel, no sentido da exclusividade, ou seja, independentemente de quantos deuses tenham existido ou possam existir, para Israel há somente um Deus – YHWH – somente a Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel, somente YHWH é a fonte de vida para Israel; (b) YHWH é um Deus pluralmente singular, no sentido de que Ele não precisa de outros deuses para repartir as tarefas (no pensamento vétero-oriental, os deuses tinham funções especializadas, por isso era necessário crer em vários deuses que cumpriam essas diferentes tarefas, tais como guerrear, fazer chover, curar doenças, etc.). Como Deus pluralmente singular, YHWH é suficiente, Israel não necessita de nenhum outro Deus para atender as suas necessidades – ou seja, YHWH não é um deus especialista, parcial; e (c) YHWH é o único Deus não feito por mãos humanas, os demais deuses são ídolos, fabricação de mãos humanas e não são capazes de agir. O aniconismo da fé israelita não se restringia apenas à ausência do uso de imagens da divindade, mas era expressão da sua crença na exclusividade e singularidade de YHWH. Por outro lado, a expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre o Senhor e o povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo, fidelidade e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel.
Conseqüentemente, o povo que faz aliança com o fiel e único Deus, é convocado a construir sua identidade a partir do amor a Deus. A escolha do verbo amar no livro do Deuteronômio tem significado muito especial. O livro do Deuteronômio adota e adapta o estilo dos tratados internacionais assírios. Nesses tratados, o rei de um país mais fraco que se associava ao rei de um país mais forte assumia o compromisso de amar o rei mais poderoso. Semelhantemente, os juramentos assírios feitos por oficiais que iniciavam seu serviço ao rei assírio faziam a mesma exigência: o oficial do rei se comprometia a amar ao rei. Assim, ao convocar Israel a amar a YHWH, o Deuteronômio não só destaca a relação de aliança entre Deus e o povo, como afirma que YHWH é o único rei de Israel, o único rei a quem Israel deveria ser fiel, o único rei a quem deveria servir. A repetição da palavra todo(a) e a soma dos termos coração, alma e força indicam que o compromisso de Israel com YHWH deveria ser integral. Assim como YHWH é um, o povo de Israel deveria ser unido em um único propósito: ser fiel a YHWH. O coração do israelita não poderia se dividir entre seu Deus e outros deuses, entre YHWH e outras lealdades.
Dessa forma, as palavras de YHWH, sua instrução (torá), deveriam ocupar o pensamento do israelita o tempo todo, e deveriam ser ensinadas de geração em geração. Eis aqui a peculiaridade deuteronômica em relação à teologia sacerdotal – ao invés de enfatizar a santidade e a pureza, mantidas através da participação na vida litúrgica no Templo, a teologia deuteronômica enfatiza o estudo das palavras de YHWH e sua prática na vida cotidiana, como demonstração da fidelidade de Israel ao seu único Deus. Todo o tempo, todas as dimensões da vida, todas as gerações do povo de Deus são convocadas à meditação, estudo e prática da Torá de YHWH. Se viver dessa maneira, Israel dará testemunho da singularidade e exclusividade de YHWH a todos os povos.
domingo, 11 de julho de 2010
Expectativas e Realidade - um complexo relacionamento
Do ponto de vista abstrato, o tema deste post é "o que é ser humano". Trazendo para um espaço mais concreto e cotidiano, o tema pode ser descrito como "que posso esperar da minha vida?", ou, se você for uma pessoa mais proativa: "como conduzir a minha vida a fim de chegar aonde desejo?" Tratarei desse tema teologicamente.
Começo com as expectativas. Uma das descrições possíveis da pessoa humana à luz da Escritura cristã é a de que nós somos seres desejantes, seres cheios de expectativas, atraídos ao futuro, ao desconhecido, ao desafiador. Um exemplo dessa característica humana na Bíblia é o relato do "pecado" de Adão e Eva, em Gênesis capítulo 2. Atraídos pela expectativa de serem como deus, ambos decidiram comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tradicionalmente, a leitura desse texto bíblico nas igrejas cristãs ressalta apenas o aspecto negativo do pecado - na tradição calvinista, uma de suas correntes teológicas afirma inclusive que o ser humano é "totalmente depravado", ou seja, que mesmo quando faz o bem, o mal está presente.
Penso que devemos olhar para o texto a partir de outro ponto de vista - o de quem procura descobrir o "bem" no "mal" praticado por Adão e Eva (representantes simbólicos de toda a humanidade). O "bem" nesse mal é o deixar aflorar o desejo, a pulsão para a vida além da rotina, para além do cotidiano, para além da mesmice. Adão e Eva, humanos, buscam transcender a si mesmos, procuram na sabedoria e no poder (a serpente é símbolo dessas duas práticas humanas) um caminho para, simplesmente, ir além.
Onde, então, o "mal" nesse "bem"? No excesso do objeto desejado, na expectativa absolutamente impossível de ser atingida, no exagero de transcendência almejada. "Querer ser como deus" é o objeto excessivo, insustentável, inatingível, impraticável. Exagero fruto de menos sabedoria, de menos inteligência, de menos percepção das possibilidades e limites da aventura da existência humana. Deixe-me dar um exemplo extraído do campo dos esportes. O futebol é uma dimensão integrante da cultura e da identidade brasileiras. A tal ponto está internalizado em nosso modo de ser que, para muita gente, o Brasil (a seleleção de futebol, que não é o Brasil, convenhamos...) tem a obrigação de jogar bem, bonito, dar espetáculo e ainda ganhar a Copa do Mundo - "A copa do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa...". Expectativa completamente excessiva, exagerada - por isso, tanto choro e ranger de dentes quando deixamos a Copa apenas entre os oito melhores times do mundo. No esporte, perder faz parte do que deve ser esperado. Quem não sabe cultivar a expectativa da derrota não consegue, também, encontrar os limites da expectativa da vitória.
Seres desejantes que constantemente tropeçamos na realidade. Uma palavra tão imponente quanto indefinível. Não interessa entrar nos detalhes da reflexão filosófica sobre a realidade. Sejamos mais econômicos. Realidade é o que está entre nosso desejo e sua consumação, entre nossa expectativa e sua realização. Por isso falamos em "choque de realidade", que se dá quando o desejo não é consumado, a expectativa não é realizada, a transcendência não é alcançada.
Voltando para a teologia do humano na escritura cristã, a realidade com que temos de lidar em nossa condição de desejantes é a da morte, a da finitude, a da incompletude e imperfeição de nosso modo de ser e viver. Morte que, de inúmeras maneiras, se instala nas sociedades e suas economias, culturas, estruturas políticas, relações interpessoais, instituições, etc. Por isso, imagino, é que o autor de Eclesiastes escreveu que é melhor estar na casa do luto no que na da alegria - na casa da alegria o desejo não encontra limites, mas na casa do luto encontramos sabedoria para temperar nosso desejo com a dose certa de realidade.
Terminando ...
Parece-me que vivemos em uma época cultural em que a sabedoria do luto se esvaiu. Foi trocada pela excessividade da alegria, do prazer, da adrenalina. Excesso de consumir - coisas e pessoas, sonhos e ilusões, experiências e sensações. Exagero de transcendência - transcender a nossa finitude, encontrar o espaço ilimitado do desejo nunca mais postergado, sempre realizado na próxima compra, no próximo consumo, na próxima sensação ...
Tornamo-nos algo-além-do-humano e, assim, menos-do-que-humano; em uma paródia infeliz do sonho ambíguo de Nietzsche - das Übermensch. Ainda nietzscheanamente falando - nossa cultura matou Deus, e colocou no lugar dele o "sonho de consumo": o desejo ilimitado, a expectativa irrefreável, a transcendência inalcançável. Ao invés de irmos ao luto do divino, festejamos a sua ausência. Precisávamos, apenas, de amor à sabedoria - mas acabamos nos enredando nas "logias" (tecno-, -sofia, teo-, bio-, etc...). Imagino que se voltarmos à simplicidade do desejo-em-simplicidade, encontraremos formas muito mais interessantes e auto-realizadoras de satisfação.
Começo com as expectativas. Uma das descrições possíveis da pessoa humana à luz da Escritura cristã é a de que nós somos seres desejantes, seres cheios de expectativas, atraídos ao futuro, ao desconhecido, ao desafiador. Um exemplo dessa característica humana na Bíblia é o relato do "pecado" de Adão e Eva, em Gênesis capítulo 2. Atraídos pela expectativa de serem como deus, ambos decidiram comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tradicionalmente, a leitura desse texto bíblico nas igrejas cristãs ressalta apenas o aspecto negativo do pecado - na tradição calvinista, uma de suas correntes teológicas afirma inclusive que o ser humano é "totalmente depravado", ou seja, que mesmo quando faz o bem, o mal está presente.
Penso que devemos olhar para o texto a partir de outro ponto de vista - o de quem procura descobrir o "bem" no "mal" praticado por Adão e Eva (representantes simbólicos de toda a humanidade). O "bem" nesse mal é o deixar aflorar o desejo, a pulsão para a vida além da rotina, para além do cotidiano, para além da mesmice. Adão e Eva, humanos, buscam transcender a si mesmos, procuram na sabedoria e no poder (a serpente é símbolo dessas duas práticas humanas) um caminho para, simplesmente, ir além.
Onde, então, o "mal" nesse "bem"? No excesso do objeto desejado, na expectativa absolutamente impossível de ser atingida, no exagero de transcendência almejada. "Querer ser como deus" é o objeto excessivo, insustentável, inatingível, impraticável. Exagero fruto de menos sabedoria, de menos inteligência, de menos percepção das possibilidades e limites da aventura da existência humana. Deixe-me dar um exemplo extraído do campo dos esportes. O futebol é uma dimensão integrante da cultura e da identidade brasileiras. A tal ponto está internalizado em nosso modo de ser que, para muita gente, o Brasil (a seleleção de futebol, que não é o Brasil, convenhamos...) tem a obrigação de jogar bem, bonito, dar espetáculo e ainda ganhar a Copa do Mundo - "A copa do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa...". Expectativa completamente excessiva, exagerada - por isso, tanto choro e ranger de dentes quando deixamos a Copa apenas entre os oito melhores times do mundo. No esporte, perder faz parte do que deve ser esperado. Quem não sabe cultivar a expectativa da derrota não consegue, também, encontrar os limites da expectativa da vitória.
Seres desejantes que constantemente tropeçamos na realidade. Uma palavra tão imponente quanto indefinível. Não interessa entrar nos detalhes da reflexão filosófica sobre a realidade. Sejamos mais econômicos. Realidade é o que está entre nosso desejo e sua consumação, entre nossa expectativa e sua realização. Por isso falamos em "choque de realidade", que se dá quando o desejo não é consumado, a expectativa não é realizada, a transcendência não é alcançada.
Voltando para a teologia do humano na escritura cristã, a realidade com que temos de lidar em nossa condição de desejantes é a da morte, a da finitude, a da incompletude e imperfeição de nosso modo de ser e viver. Morte que, de inúmeras maneiras, se instala nas sociedades e suas economias, culturas, estruturas políticas, relações interpessoais, instituições, etc. Por isso, imagino, é que o autor de Eclesiastes escreveu que é melhor estar na casa do luto no que na da alegria - na casa da alegria o desejo não encontra limites, mas na casa do luto encontramos sabedoria para temperar nosso desejo com a dose certa de realidade.
Terminando ...
Parece-me que vivemos em uma época cultural em que a sabedoria do luto se esvaiu. Foi trocada pela excessividade da alegria, do prazer, da adrenalina. Excesso de consumir - coisas e pessoas, sonhos e ilusões, experiências e sensações. Exagero de transcendência - transcender a nossa finitude, encontrar o espaço ilimitado do desejo nunca mais postergado, sempre realizado na próxima compra, no próximo consumo, na próxima sensação ...
Tornamo-nos algo-além-do-humano e, assim, menos-do-que-humano; em uma paródia infeliz do sonho ambíguo de Nietzsche - das Übermensch. Ainda nietzscheanamente falando - nossa cultura matou Deus, e colocou no lugar dele o "sonho de consumo": o desejo ilimitado, a expectativa irrefreável, a transcendência inalcançável. Ao invés de irmos ao luto do divino, festejamos a sua ausência. Precisávamos, apenas, de amor à sabedoria - mas acabamos nos enredando nas "logias" (tecno-, -sofia, teo-, bio-, etc...). Imagino que se voltarmos à simplicidade do desejo-em-simplicidade, encontraremos formas muito mais interessantes e auto-realizadoras de satisfação.
terça-feira, 6 de julho de 2010
“Não carregarás o nome de YHWH, teu Deus, para a infâmia”
Eu sei que é uma tradução literariamente ruim, estamos acostumados com "não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão". A tradução, porém, tenta expressar com mais força, em português, o sentido da terceira palavra do Decálogo (Dez Palavras, mais conhecido na tradição cristã como os Dez Mandamentos). O texto descreve a pessoa (crente em um deus) como portadora, carregadora do nome divino – ou seja, o que a pessoa faz, repercute na pessoa de Deus. Se eu vivo uma vida nula, inútil, carrego o nome divino comigo para a nulidade. Se vivo uma vida injusta, carrego o nome divino juntamente comigo para o “Hall da Infâmia”. Por quê? Na cultura hebraica antiga, o nome não é apenas um rótulo, um identificador, mas uma aposta, uma descrição de caráter, uma declaração de identidade. Assim, carregar o nome divino é carregar a identidade divina, carregar a sua reputação, a sua respeitabilidade, a sua legitimidade. Daí, a palavra radical – “não carregarás ...”
A tradição judaica, desde tempos antigos, tem dado tanta importância a esta palavra que chegou a banir da fala pública o próprio nome divino. Quando, na leitura bíblica, um judeu encontra o nome de seu Deus, ao invés de pronunciá-lo, usa a palavra “Adonai” (Meu Senhor). Pode parecer excesso de literalismo, ou até mesmo de legalismo. Penso, porém, que devemos olhar para esta tradição com mais simpatia – é um excesso, sim, mas de reverência, de cuidado com a reputação divina. Excesso nascido do reconhecimento da nossa incapacidade (humana) de cumprir a promessa de nossa vocação divina: “como eu sei que, mais cedo ou mais tarde, vou caminhar para a infâmia, então é melhor cuidar preventivamente do Nome”.
Nós, cristãos, não sabemos bem o que fazer com esta palavra do Decálogo, até porque nosso Deus não tem nome. É apenas Deus, um título, um rótulo, um conceito. E abusamos desse “nome” em nossa fala cotidiana. Em algumas culturas, “Oh God!” é uma expressão gritada na hora do orgasmo (o que não é de todo ruim, pois o prazer é uma dádiva divina). Não, o problema não é a ligação do nome com o prazer, mas a banalização do nome, especialmente quando o prazer alcançado não tem nada a ver com a vocação divina para o prazer. No Brasil, expressões como “meu deus”ou “ai meu deus” (e semelhantes), tornaram-se interjeições proferidas a qualquer momento, ao ponto de não sabermos mais quando têm a ver com o clamor e a oração ou quando são apenas um substituto para um palavrão, ou outra interjeição qualquer.
Não! Não vou concluir o post com uma lição de moral. A questão aqui é teológica. A grande blasfêmia, a grande negação desta palavra do Decálogo está no modo metafísico da teologia. Que expressão majestosa, cheia de pompa e circunstância. Mas que é esse tal de “modo metafísico” da teologia? Uma teologia é metafísica quando ela é tão forte, tão cheia de si, tão segura e arrogante, que controla o Nome e o reduz a conceitos, modos de expressão litúrgica, experiências, doutrinas ou equivalentes. Em outras palavras, uma teologia metafísica chama tanto a atenção para si mesma, que esquecemos de Deus – ou, talvez melhor dizendo – confundimos a teologia com o próprio Deus e cremos mais na teologia do que em Deus.
Uma teologia que leva a sério esta terceira palavra do Decálogo suspende a certeza certa e forte sobre o Nome e fala de Deus em uma reverente atitude de certeza incerta. Certeza, não conceitual, mas pessoal – quando me perguntam sobre as provas da existência de Deus, só tenho uma: “conversamos diariamente” (uma prova que não prova nada, convenhamos!). Incerta, não por ignorância, mas por fé: “certeza do que esperamos, convicção do que não vemos”. Uma boa teologia, para mim, é uma teologia pós-metafísica, não-metafísica, ou fraca (ou qualquer outro rótulo que você preferir). É uma teologia que não chama a atenção para a sua própria palavra, mas encaminha a atenção para a palavra inefável (indizível) – o Nome. É uma teologia repleta de certezas incertas, que faz com que as pessoas que a lêem tenham mais perguntas do que respostas, mais admiração e espanto do que conhecimento sólido e definitivo; mais reverência e humildade do que intimidade e familiaridade com o Nome. Ou seja, uma boa teologia não carrega o Nome para a infâmia – se ela for para o Hall da Infâmia, irá sozinha. Mas, se chegar ao Hall da Fama, estará em excelente companhia!
A tradição judaica, desde tempos antigos, tem dado tanta importância a esta palavra que chegou a banir da fala pública o próprio nome divino. Quando, na leitura bíblica, um judeu encontra o nome de seu Deus, ao invés de pronunciá-lo, usa a palavra “Adonai” (Meu Senhor). Pode parecer excesso de literalismo, ou até mesmo de legalismo. Penso, porém, que devemos olhar para esta tradição com mais simpatia – é um excesso, sim, mas de reverência, de cuidado com a reputação divina. Excesso nascido do reconhecimento da nossa incapacidade (humana) de cumprir a promessa de nossa vocação divina: “como eu sei que, mais cedo ou mais tarde, vou caminhar para a infâmia, então é melhor cuidar preventivamente do Nome”.
Nós, cristãos, não sabemos bem o que fazer com esta palavra do Decálogo, até porque nosso Deus não tem nome. É apenas Deus, um título, um rótulo, um conceito. E abusamos desse “nome” em nossa fala cotidiana. Em algumas culturas, “Oh God!” é uma expressão gritada na hora do orgasmo (o que não é de todo ruim, pois o prazer é uma dádiva divina). Não, o problema não é a ligação do nome com o prazer, mas a banalização do nome, especialmente quando o prazer alcançado não tem nada a ver com a vocação divina para o prazer. No Brasil, expressões como “meu deus”ou “ai meu deus” (e semelhantes), tornaram-se interjeições proferidas a qualquer momento, ao ponto de não sabermos mais quando têm a ver com o clamor e a oração ou quando são apenas um substituto para um palavrão, ou outra interjeição qualquer.
Não! Não vou concluir o post com uma lição de moral. A questão aqui é teológica. A grande blasfêmia, a grande negação desta palavra do Decálogo está no modo metafísico da teologia. Que expressão majestosa, cheia de pompa e circunstância. Mas que é esse tal de “modo metafísico” da teologia? Uma teologia é metafísica quando ela é tão forte, tão cheia de si, tão segura e arrogante, que controla o Nome e o reduz a conceitos, modos de expressão litúrgica, experiências, doutrinas ou equivalentes. Em outras palavras, uma teologia metafísica chama tanto a atenção para si mesma, que esquecemos de Deus – ou, talvez melhor dizendo – confundimos a teologia com o próprio Deus e cremos mais na teologia do que em Deus.
Uma teologia que leva a sério esta terceira palavra do Decálogo suspende a certeza certa e forte sobre o Nome e fala de Deus em uma reverente atitude de certeza incerta. Certeza, não conceitual, mas pessoal – quando me perguntam sobre as provas da existência de Deus, só tenho uma: “conversamos diariamente” (uma prova que não prova nada, convenhamos!). Incerta, não por ignorância, mas por fé: “certeza do que esperamos, convicção do que não vemos”. Uma boa teologia, para mim, é uma teologia pós-metafísica, não-metafísica, ou fraca (ou qualquer outro rótulo que você preferir). É uma teologia que não chama a atenção para a sua própria palavra, mas encaminha a atenção para a palavra inefável (indizível) – o Nome. É uma teologia repleta de certezas incertas, que faz com que as pessoas que a lêem tenham mais perguntas do que respostas, mais admiração e espanto do que conhecimento sólido e definitivo; mais reverência e humildade do que intimidade e familiaridade com o Nome. Ou seja, uma boa teologia não carrega o Nome para a infâmia – se ela for para o Hall da Infâmia, irá sozinha. Mas, se chegar ao Hall da Fama, estará em excelente companhia!
quinta-feira, 1 de julho de 2010
Religião Verdadeira!?
Uma das características do comportamento religioso, especialmente quando há uma organização institucional presente, é a crença de que só uma religião é verdadeira. E, é claro, a religião verdadeira é a minha. No caso do Cristianismo, é muito comum ouvir pessoas e instituições fazendo essa afirmação com base em textos bíblicos como "Eu sou o caminho, a verdade e a vida, neinguém vem ao Pai senão por mim", ou "E em nenhum outro há salvação; porque debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, em que devamos ser salvos".
Lidos superficialmente, estes textos realmente sugerem que só há uma religião verdadeira, a cristã. Entretanto, como a superfície dos textos normalmente não diz praticamente nada, precisamos prestar mais atenção ao que esses versículos de fato afirmam.
Note bem: não se está falando do Cristianismo, mas de Jesus - Ele é o único caminho e o único salvador. Não podemos confundir Jesus com as Igrejas Cristãs, nem com as doutrinas e confissões de fé, nem com as comunidades ditas cristãs. Jesus é uma pessoa, uma pessoa peculiar, divino-humana, diferente de todas as demais pessoas e irredutível a qualquer forma religiosa.
Jesus é, antes de tudo, um caminho, como diz o texto de João. Assim, sua proposta não é a de hierarquizar religiões, mas de hierarquizar caminhos, estilos de vida. Como se diz no sermão do monte, segundo o evangelho de Mateus: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus". Não se trata, então, de religião, de confissão, mas de ação, de existência semelhante à do Messias Jesus. Quem faz a vontade do Pai celestial? Quem vive como Jesus, quem ama como Jesus, quem sofre como Jesus, quem ganha dinheiro como Jesus, quem morre como Jesus, quem ressuscita como Jesus ...
Ou, então, de acordo com um sermão apocalíptico de Jesus, segundo Mateus: "Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos visitar-te? E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes."
Ou, ainda, segundo Paulo, o apóstolo dos protestantes: "Portanto, és inescusável, ó homem, qualquer que sejas, quando julgas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu que julgas, praticas o mesmo. E bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade, contra os que tais coisas praticam. E tu, ó homem, que julgas os que praticam tais coisas, cuidas que, fazendo-as tu, escaparás ao juízo de Deus? Ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te conduz ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em favor o bem, procuram glória, e honra e incorrupção; mas ira e indignação aos que são contenciosos, e desobedientes à iniqüidade; tribulação e angústia sobre a alma de todo homem que pratica o mal, primeiramente do judeu, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem, primeiramente ao judeu, e também ao grego; pois para com Deus não há acepção de pessoas".
Deixo estes dois textos bíblicos sem comentário ou interpretação. Quem sabe a força chocante desses textos seja a melhor resposta para quem acredita ter a religião verdadeira e classifica todos os demais como idólatras, perdidos, etc. Quem sabe a força chocante desses textos seja o melhor desafio para quem acha que basta ser religioso para ser salvo.
Lidos superficialmente, estes textos realmente sugerem que só há uma religião verdadeira, a cristã. Entretanto, como a superfície dos textos normalmente não diz praticamente nada, precisamos prestar mais atenção ao que esses versículos de fato afirmam.
Note bem: não se está falando do Cristianismo, mas de Jesus - Ele é o único caminho e o único salvador. Não podemos confundir Jesus com as Igrejas Cristãs, nem com as doutrinas e confissões de fé, nem com as comunidades ditas cristãs. Jesus é uma pessoa, uma pessoa peculiar, divino-humana, diferente de todas as demais pessoas e irredutível a qualquer forma religiosa.
Jesus é, antes de tudo, um caminho, como diz o texto de João. Assim, sua proposta não é a de hierarquizar religiões, mas de hierarquizar caminhos, estilos de vida. Como se diz no sermão do monte, segundo o evangelho de Mateus: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus". Não se trata, então, de religião, de confissão, mas de ação, de existência semelhante à do Messias Jesus. Quem faz a vontade do Pai celestial? Quem vive como Jesus, quem ama como Jesus, quem sofre como Jesus, quem ganha dinheiro como Jesus, quem morre como Jesus, quem ressuscita como Jesus ...
Ou, então, de acordo com um sermão apocalíptico de Jesus, segundo Mateus: "Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos visitar-te? E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes."
Ou, ainda, segundo Paulo, o apóstolo dos protestantes: "Portanto, és inescusável, ó homem, qualquer que sejas, quando julgas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu que julgas, praticas o mesmo. E bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade, contra os que tais coisas praticam. E tu, ó homem, que julgas os que praticam tais coisas, cuidas que, fazendo-as tu, escaparás ao juízo de Deus? Ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te conduz ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em favor o bem, procuram glória, e honra e incorrupção; mas ira e indignação aos que são contenciosos, e desobedientes à iniqüidade; tribulação e angústia sobre a alma de todo homem que pratica o mal, primeiramente do judeu, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem, primeiramente ao judeu, e também ao grego; pois para com Deus não há acepção de pessoas".
Deixo estes dois textos bíblicos sem comentário ou interpretação. Quem sabe a força chocante desses textos seja a melhor resposta para quem acredita ter a religião verdadeira e classifica todos os demais como idólatras, perdidos, etc. Quem sabe a força chocante desses textos seja o melhor desafio para quem acha que basta ser religioso para ser salvo.
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