Semana passada apresentei as características básicas da inclusividade como elemento constitutivo da parceria (berith) entre YHWH e sua criação. Hoje quero destacar o que impede a inclusão, assim como, anteriormente, contrapus capitalismo, individualismo consumista e "religião" como obstáculos à vitalidade e à liberdade.
Capitalismo, individualismo consumista e "religião" também são obstáculos à inclusividade da parceria divino-criacional. De que maneira?
Um mecanismo de exclusão é a invisibilização do "outro". Nas sociedades capitalistas, parcela significativa da população é tornada invisível para que a injustiça estruturada-estruturante no/do capitalismo não seja percebida. No Brasil, por exemplo, cerca de um terço da população é constituída por essa gente invisível. Tais pessoas são excluídas do convívio social visível a fim de que não nos vejamos confrontados com o preço pago pela nossa "vida boa". Quem são essas pessoas? Podemos nomeá-las como pobres, miseráveis, vagabundos, bandidos, gentalha, ralé, ou termos assemelhados. São as pessoas que, para a ideologia capitalista, constituem o grupo de fracassados. Pessoas que não "conseguiram" aproveitar as oportunidades de educação, trabalho e ascensão social oferecidas livremente a todas cidadãs e cidadãos dos países democráticos. Gente que não conseguiu atingir o ideal heróico e excludente do "self-made (wo)man".
Gente que não está qualificada para os postos formais do mercado de trabalho "digno" e se vê obrigada a aceitar qualquer trabalho, por mais indigno que seja. Gente que cata os lixos que descartamos; gente que se embebeda com as bebidas que produzimos para o lazer dos bem-sucedidos e para afogar as mágoas dos fracassados; gente que vende o prazer sexual enquanto o corpo ainda consegue atrair compradores (é claro que estou falando do sexo por 10, 20 ou tantos reais); gente que é aprovada sem mérito no sistema escolar público que não consegue lidar com sua própria incapacidade de enfrentar o sistema capitalista e, depois, não será aceita pelo "mercado"; gente que lava e "guarda" os carros que simbolizam a ascensão social e o prestígio do consumo; gente que sobrevive apenas às custas da lenta e progressiva morte advinda das drogas que encobrem o "fracasso"; gente que, enfim, irá encher os bancos das igrejas que oferecem solução mágica para problemas nada mágicos, soluções que nem todos os Harry Potter do mundo da fantasia conseguem conjurar.
Outro mecanismo, indissoluvelmente ligado ao primeiro, é o da culpabilização do "outro". Essa gente excluída pelo sistema capitalista é não só tornada invisível, mas também culpabilizada pela sua própria condição de vítimas de uma injustiça social estruturada e estruturante da vida de seus corpos invisíveis. Já mencionara, e repito: as pessoas invisíveis são descritas como perdedoras, preguiçosas, indolentes, incapazes de aproveitar as oportunidades que o capitalismo e a democracia colocam ao alcance de todas as pessoas (a quem o sistema tem interesse em aproveitar). Gente que não alcançou o mérito necessário para ser enxergada; gente que não se esforçou o bastante; gente que não se sacrificou para alcançar o que "toda pessoa honesta e trabalhadora" alcança: dinheiro suficiente para viver sua vidinha individualista e consumista no sistema capitalista; gente que não teve fé suficiente para sair da própria desgraça e cair nas graças do deus Mamom (dinheiro ou mercado, atualizando um dito atribuído a Jesus no Evangelho de Mateus, no chamado sermão da montanha).
Culpabilização que é especialidade das instituições eclesiásticas cristãs que proliferam em nossa terra brasilis. Há várias maneiras de usar a Bíblia e a tradição cristã para culpabilizar as pessoas já condenadas pelo "mundo". A mais famosa e eficaz dessas maneiras é a perversão do conceito bíblico do pecado. Um conceito que, na Bíblia em geral, funciona principalmente como demarcador da distância ontológica (essencial) entre YHWH e a criação; mas que, em nosso discurso "cristão" é reduzido ao componente ético-moral. Conceito que legitima o círculo vicioso do sistema excludente: "você bebe porque é pecador, é pecador porque bebe" (podemos substituir o verbo beber por qualquer outro dos comportamentos que invisibiliza os excluídos do sistema vigente). Conceito que, ao invés de ressaltar a graça perdoadora de YHWH, caricaturiza o caráter de Deus como o de um rígido Juiz que distribui sentenças condenatórias a quem não pratica as obras necessárias para merecer a graça. E entre tais obras incluo a "fé" tão decantada em nosso discurso protestante, mas que de "fé" não tem quase nada, reduzida a uma obra meritória - posto que, de resposta à graça já outorgada, se torna em condição para recebê-la.
Você acha que estou exagerando? É possível. Mas então olhe para os irmãos e irmãs da igreja, olhe para seus amigos e amigas, olhe para seus e suas colegas de trabalho ou estudo. A gentalha invisível está bem representada nesses espaços sociais "dignos" do mundo capitalista que eu e você frequentamos piedosamente? Ou, quem sabe, em sua igreja, bêbados não são retirados do templo, prostitutas são bem recebidas, pessoas de rua encontram teto para não dormir ao relento, crianças que cheiram cola conseguem encontrar comida e afeto???
será?
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