Voltemos à reflexão sobre a berith na Escritura judaico-cristã. Vitalidade, Liberdade, Inclusividade – essas características da parceria divina foram brevemente discutidas em momentos anteriores. Hoje nosso foco recai sobre a quarta característica da parceria: a equidade. Opto pelo termo equidade ao invés de igualdade, porque o primeiro permite uma descrição mais adequada, na medida em que o seu uso corrente na língua não se confunde com a ausência de diferenças ou desigualdades. Equidade significa, basicamente, tratamento igualmente adequado em situações desiguais, a imparcialidade no trato, o reconhecimento dos direitos de cada pessoa independentemente de mérito particular.
Na Torá judaica, o livro do Deuteronômio, em uma seção que vai de 14:22 a 15:23, tematiza a reestruturação da sociedade com vistas à equidade. O texto bíblico pressupõe que, ao longo da vida, as desigualdades surgem – seja por causas naturais (em uma economia agrícola pré-moderna, qualquer desarranjo das condições naturais poderia tornar necessitada uma família), ou por causas humanamente impostas (tributação, cobrança de empréstimos, etc.). Cinco cláusulas ético-legislativas visam a recomposição da equidade.
A primeira delas é a “lei do dízimo” (14:22-29), dividida em duas partes: o dízimo anual (22-27) e o dízimo trienal (28-29). O dízimo anual deveria ser levado ao lugar de culto e consumido em uma grande festa, pelos ofertantes, suas famílias, seus empregados, servos e por todas as pessoas necessitadas. Já o dízimo trienal deveria ser recolhido e estocado para servir às necessidades de “órfãos, viúvas, imigrantes e levitas (sacerdotes)”, grupos de pessoas que não possuíam terras e, assim, não poderiam se sustentar. Com esta formulação, a lei deuteronômica modifica a função do dízimo nas leis sacerdotais e monárquicas – nas quais o dízimo era uma espécie de imposto estatal ou religioso – gerando desigualdade, na medida em que privava o produtor e sua comunidade de parte do fruto do seu trabalho.
A segunda norma (15:1-6), conhecida como ano “sabático”, ou “da remissão”, é uma reformulação de antiga norma pré-monárquica, que determinava o descanso da terra agrícola a cada sete anos. Na forma deuteronômica, a lei demanda o perdão de todas as dívidas de judeus no sétimo ano do ciclo sabático (tornando, assim, compulsória e permanente uma regra que reis poderiam utilizar a seu arbítrio). Trata-se do perdão de dívidas contraídas para sustento da família e não de dívidas para consumo de supérfluos, investimento ou similar (não era uma economia monetária nem capitalista). O texto afirma que o perdão deve ser proclamado em relação às dívidas do “próximo” ou do “irmão”, de modo que o devedor e sua família pudessem reorganizar-se e se restabelecer em sua própria terra.
A terceira norma é a mais interessante (7-11), pois tematiza o empréstimo no sexto ano do ciclo sabático. Para um credor, emprestar no sexto ano do ciclo sabático praticamente equivaleria a dar o dinheiro ou o produto, pois com a chegada do sétimo ano a dívida teria de ser perdoada. Por isso, a norma enfatiza as paixões do possível credor: “não endurecerás teu coração, nem fecharás a tua mão ... não seja maligno teu olho ... não seja maligno teu coração ... generosamente darás”. A norma coloca o ser humano acima da economia, acima da relação comercial, acima da dívida financeira.
A quarta norma (12-18) tematiza a libertação dos escravos – escravizados especialmente em função de dívidas contraídas e não pagas. Tal servidão só poderia durar seis anos. No sétimo ano (não do ciclo sabático, mas do período específico de serviço ao credor) o escravo deveria ser libertado e, ao sair da servidão, deveria receber produto suficiente (com liberalidade) para retomar o trabalho agrícola em sua própria terra. Aqui a motivação da norma é econômica: ao trabalhar por seis anos, qualquer dívida outrora contraída já teria sido paga e com sobras! Uma cláusula da norma é intrigante para nós ocidentais modernos: a pessoa poderia escolher não aceitar a libertação e permanecer como escrava da família do credor. Estranho. Mas, de novo, o valor é: a pessoa está acima da economia e das normas legais.
A quinta norma é a mais estranha para nós (19-23), pois trata do sacrifício de primogênitos de animais como expressão de temor e gratidão a Deus. Tais animais seriam consumidos, como os dízimos, em festas religiosas com a participação de toda a família do ofertante. Caso o animal tivesse alguma impureza que o impedisse de ser consagrado na festa religiosa, deveria ser comido na casa da família, em uma festa “sagrada não-litúrgica” (alguns chamariam esta cláusula de “secular”, mas como a motivação é teológica, não acho apropriado tal termo). A motivação, mais uma vez, é a equidade: todas as pessoas poderiam aproveitar a vida reproduzida...
A parceria divina visa a equidade. É claro que hoje em dia as normas deuteronômicas enquanto tais se tornaram pesadamente anacrônicas. O que importa, porém, é o valor subjacente às mesmas: equidade, reestruturação da vida social com vistas a proporcionar boas condições de vida a todos os membros do povo – sem relação com seu possível mérito ou demérito. Trata-se de uma visão político-econômica que, por um lado, está na base da visão moderna da dignidade humana e dos direitos das pessoas; mas, por outro, contesta a visão liberal capitalista dessa dignidade e direitos – centrada em mérito e conquista – e lhe opõe uma descrição dos direitos humanos baseada na simples graça, na dádiva ou, se preferirmos, na necessidade e na igual dignidade de todas as pessoas, independentemente do lugar social que ocupam.
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