Continuo as reflexões em gotas sobre a berith. Lembrando: (1) berith = parceria/relação pessoal mas não individualista; (2) berith possui várias dimensões, definidas pelos tipos de parceria/relacionamento que são por ela normatizados; (3) a primeira dimensão sobre que refleti foi a "pró-vitalidade" - a parceria de YHWH, a partir do ato criador, é com toda a sua criação e não apenas com os seres humanos.
A segunda dimensão da parceria que desejo ressaltar é a da liberdade. YHWH, pró-vitalidade é também pró-liberdade. Ao criar o mundo, faz desse mundo todo parceiro de seu ato criador, mediante o repartir a responsabilidade de gerar e sustentar a vida. Essa responsabilidade é o modo da parceria YHWH-criação estabelecer a liberdade.
Neste sentido, liberdade não pode ser vista, então, como o direito de fazer o que se quer fazer. Esta concepção é meramente individualista, voluntarista e pró-mortalidade. É melhor pensar na liberdade em outros termos. Por exemplo: nos escritos de Hegel se pode encontrar uma concepção de liberdade como superação da vontade individual a partir do reconhecimento dos direitos e das necessidades dos outros na totalidade social - ou liberdade como vida ética, concretizada no direito universalizável. Esse direito, porém, não pode ser meramente externo ao ser humano, pois, se fosse, não serviria para a liberdade - pois liberdade presupõe não ser determinado exteriormente. Citando o próprio Hegel: “A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade como seu fim, conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim conteúdo universal” (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Loyola, São Paulo, vol. 1, p. 263).
Poderia dar outros exemplos. Fico por aqui. Citei Hegel como um modo de também nos divertirmos. Eu, em particular, sou avesso ao sistema hegeliano. Cito porque, mesmo não aceitando um sistema, podemos dele extrair conceitos e ressignificá-los. Daí: liberdade não é fazer o que eu quero, mas, sim: liberdade é viver a parceria pró-vitalidade (isto ressignifica a noção hegeliana de eticidade). Ser livre é poder fazer tudo aquilo que possibilita a vitalidade. Mas só sou livre em parceria, ou, somente na comunhão com Deus e com sua criação, posso ser livre. Até porque, fora da relação com a criação e com YHWH criador/a, sou apenas um ser em direção à morte. Nunca um ser livre.
Volto ao texto do Gênesis. Os primeiros onze capítulos mostram como a liberdade é perdida na medida em que recusamos a parceria pró-vitalidade. O pecado originante (não "original" - briga da teologia sistemática) pode ser descrito como a tentativa de viver em liberdade sem a parceria - em outras palavras, a proibição simbólica de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal não visava a manutenção de Adão e Eva na inocência infantil. Visava, ao contrário, que Adão e Eva aprendessem que somente na parceria com YHWH o conhecimento do bem e do mal lhes serviria como veículo de liberdade e não de servidão. Daí pecado originante: querer ser livre fora da parceria é a origem de todos os pecados possíveis e imagináveis. ("Que volta estranha!" Talvez você esteja meio perdido com o meu argumento. De fato, deixei muita coisa implícita neste parágrafo. Uma dica para você preencher o argumento, se quiser: leia o Gênesis 2-3 à luz da discussão de Nietazsche e Foucault sobre o saber como poder e o poder como meio de colocar o outro em servidão.)
Um salto no tempo e espaço. De Gênesis a Gálatas. "Para a liberdade Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão" (5:1). "Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, em amor, colocai-vos a serviço uns dos outros" (5:13). Liberdade só existe na parceria com a pessoa messiânica Jesus - fora da parceria, retornamos ao jugo da escravidão ao mundo, ao pecado, à Lei e à carne. Retornamos ao mundo da liberdade como mero dever - externamente imposto sobre nós - seja por Deus, seja pela natureza, seja pelo Direito/Lei, seja pela cultura, etc.
Liberdade só existe na parceria de amor/serviço mútuos que prestamos uns aos outros. Liberdade é liberdade do egoísmo para a liberdade enquanto amar. É a liberdade do dever, para a liberdade enquanto possibilidade. É a liberdade da morte, para a liberdade enquanto vitalidade. Vitalidade que se concretiza no serviço amoroso a todas e todos os parceiros na criação divina. Liberdade é não receber a imposição do dever de nenhuma força externa a nós. O dever (ressignificando Kant) brota de dentro de nós, na relação de parceria pró-vitalidade, com YHWH e toda a criação. Assim, dever é sinônimo de possibilidade. Amo as outras pessoas e criaturas de YHWH porque, na parceria, posso amá-las - e , ao amá-las, também amo a mim mesmo, pois me coloco no lugar de ser amado por todos os demais parceiros e parceiras da parceria pró-vitalidade. Podemos descrever, então, a liberdade, também como hospitalidade - acolher o outro, não-convidado, como co-habitante na minha casa. (Aqui, estão implícitas muitas das discussões éticas de Emanuel Levinas e Jacques Derrida, assim como uma das parábolas de Jesus, a do banquete em Lucas 14:12-14.)
É preciso, agora, dar o salto da linguagem pessoal para a das relações institucionalizadas em nossas sociedades complexas do mundo contemporâneo. Deixo este salto para você.
Julio, como conciliar a noção cristã de liberdade com a hegeliana?
ResponderExcluirPedro, Não acho necessário fazer tal conciliação. Podemos fazer os dois conceitos dialogarem entre si e extrair os novos sentidos que desejamos.
ResponderExcluirAbs