No mundo moderno, a filosofia e a ciência subordinaram o olfato (juntamente com o paladar e o tato) à visão e audição, posto que aquele pouco podia oferecer à construção de conceitos, comparativamente aos sentidos da visão e da audição. Montaigne chegou a afirmar (injustificadamente) que um mundo ideal é um mundo inodoro, posto que seria o mundo puro das crianças.
No mundo contemporâneo, o olfato volta a ocupar lugar de destaque na reflexão filosófica e científica, em função de suas aplicações práticas: “Nos dois últimos séculos os odores ganham espaço de investigação e a cultura do corpo desodorizado, motiva a produção imensurável de produtos que mascaram os odores do corpo: desodorantes, cremes, sabões, pós e pomadas. Surge uma nova apropriação do sentido do olfato pelo mercado, através da comercialização dos odores, com produtos médico/sanitários amplamente utilizados pela enfermagem. Incluso ao controle dos odores do corpo, se promovem o diagnóstico, tratamento e vigilância dos odores ambientais em todos os espaços da atividade humana, públicos ou privados.” (ESTÉTICA DOS ODORES: O SENTIDO DO OLFATO E A ENFERMAGEM)
O culto ao corpo agradavelmente aromatizado é profundamente ambíguo. Se, por um lado, exalta a beleza e o prazer; por outro, oculta sob o aroma de perfumes prazerosos o pútrido cheiro da morte que se estende às pessoas excluídas da vida consumista. Por isso, recuperar a discussão bíblica sobre o olfato é importante para a construção de uma teologia relevante para a humanidade contemporânea. Segue um início sugestivo dessa recuperação.
Um aroma ambíguo
Em Êxodo, Levítico e Números é usada 37 vezes a expressão “cheiro suave” referindo-se aos sacrifícios ofertados a Deus, por exemplo: Lv 6:21 “Numa assadeira se fará com azeite; bem embebida a trarás; em pedaços cozidos oferecerás a oferta de cereais por cheiro suave ao Senhor”. O termo incenso é usado 53 vezes nesses mesmos livros, indicando também o aroma que deveria permanecer no templo, especialmente durante os sacrifícios. Em Deuteronômio, porém, o sacrifício não é descrito como “cheiro suave” e somente uma vez é usado o termo “incenso” (33,10). No próprio Pentateuco encontramos a tensão que a visão sacrificial oferecia à reflexão teológica vétero-israelita. Essa tensão está presente sobremodo na tradição profética.
A ambigüidade do odor dos sacrifícios e do incenso está em que eles podem ser um péssimo cheiro perante o Senhor, como no caso da rebelião de Corá em Números 16: “35 Então saiu fogo do Senhor, e consumiu os duzentos e cinqüenta homens que ofereciam o incenso. 36 Então disse o Senhor a Moisés: 37 Dize a Eleazar, filho de Arão, o sacerdote, que tire os incensários do meio do incêndio; e espalha tu o fogo longe; porque se tornaram santos 38 os incensários daqueles que pecaram contra as suas almas; deles se façam chapas, de obra batida, para cobertura do altar; porquanto os trouxeram perante o Senhor, por isso se tornaram santos; e serão por sinal aos filhos de Israel. 39 Eleazar, pois, o sacerdote, tomou os incensários de bronze, os quais aqueles que foram queimados tinham oferecido; e os converteram em chapas para cobertura do altar, 40 para servir de memória aos filhos de Israel, a fim de que nenhum estranho, ninguém que não seja da descendência de Arão, se chegue para queimar incenso perante o Senhor, para que não seja como Corá e a sua companhia; conforme o Senhor dissera a Eleazar por intermédio de Moisés.”
A mesma valoração negativa se faz quando os sacrifícios e o incenso são, ou ofertados a outros deuses, ou encobrem a injustiça. Então, tornam-se abomináveis a YHWH, por exemplo:
(a) Ezequiel 6:13 Então sabereis que eu sou o Senhor, quando os seus mortos estiverem estendidos no meio dos seus ídolos, em redor dos seus altares, em todo outeiro alto, em todos os cumes dos montes, e debaixo de toda árvore verde, e debaixo de todo carvalho frondoso, lugares onde ofereciam suave cheiro a todos os seus ídolos;
(b) Isaías 1:13 Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação. As luas novas, os sábados, e a convocação de assembléias ... não posso suportar a iniqüidade e o ajuntamento solene!
(c) 2 Reis 17:11 (Israel) “... queimaram incenso em todos os altos, como as nações que o Senhor expulsara de diante deles; cometeram ações iníquas, provocando à ira o Senhor”; e 2 Reis 23:5 (Judá) “Destituiu os sacerdotes idólatras que os reis de Judá haviam constituído para queimarem incenso sobre os altos nas cidades de Judá, e ao redor de Jerusalém, como também os que queimavam incenso a Baal, ao sol, à lua, aos planetas, e a todo o exército do céu”.
Em oposição ao regime sacrificial, o Salmo 141:2 “Suba a minha oração, como incenso, diante de ti, e seja o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde!” apresenta a oração como um perfume que sobe até Deus e o comove a agir favoravelmente!
Estes exemplos mostram que já na discussão teológica do antigo Israel o acesso sacrificial a Deus era questionado. Quando o autor de Hebreus afirma que o sacrifício de Jesus é definitivo e elimina a lógica sacrificial enquanto tal, está dando continuidade a este tipo de reflexão profética sobre a inutilidade do sacrifício. A persistência da lógica sacrificial no Cristianismo revela uma inconsistência nas práticas cristãs. Inconsistência que tem servido para a manutenção de situações de injustiça e opressão, legitimadas pela crença de que o sacrifício é um pequeno preço a ser pago para alcançar a vida eterna ou, na teologia da prosperidade, as bênçãos de Deus no presente. O Deus de judeus e cristãos, porém, não necessita de sacrifícios e abomina a lógica sacrificial. Autores como René Girard e Franz Hinkelammert, críticos da lógica sacrificial, mereceriam ser mais estudados em nossos dias posto que são por demais relevantes em sua celebração acadêmica da vida!
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