terça-feira, 6 de julho de 2010

“Não carregarás o nome de YHWH, teu Deus, para a infâmia”

Eu sei que é uma tradução literariamente ruim, estamos acostumados com "não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão". A tradução, porém, tenta expressar com mais força, em português, o sentido da terceira palavra do Decálogo (Dez Palavras, mais conhecido na tradição cristã como os Dez Mandamentos). O texto descreve a pessoa (crente em um deus) como portadora, carregadora do nome divino – ou seja, o que a pessoa faz, repercute na pessoa de Deus. Se eu vivo uma vida nula, inútil, carrego o nome divino comigo para a nulidade. Se vivo uma vida injusta, carrego o nome divino juntamente comigo para o “Hall da Infâmia”. Por quê? Na cultura hebraica antiga, o nome não é apenas um rótulo, um identificador, mas uma aposta, uma descrição de caráter, uma declaração de identidade. Assim, carregar o nome divino é carregar a identidade divina, carregar a sua reputação, a sua respeitabilidade, a sua legitimidade. Daí, a palavra radical – “não carregarás ...”

A tradição judaica, desde tempos antigos, tem dado tanta importância a esta palavra que chegou a banir da fala pública o próprio nome divino. Quando, na leitura bíblica, um judeu encontra o nome de seu Deus, ao invés de pronunciá-lo, usa a palavra “Adonai” (Meu Senhor). Pode parecer excesso de literalismo, ou até mesmo de legalismo. Penso, porém, que devemos olhar para esta tradição com mais simpatia – é um excesso, sim, mas de reverência, de cuidado com a reputação divina. Excesso nascido do reconhecimento da nossa incapacidade (humana) de cumprir a promessa de nossa vocação divina: “como eu sei que, mais cedo ou mais tarde, vou caminhar para a infâmia, então é melhor cuidar preventivamente do Nome”.

Nós, cristãos, não sabemos bem o que fazer com esta palavra do Decálogo, até porque nosso Deus não tem nome. É apenas Deus, um título, um rótulo, um conceito. E abusamos desse “nome” em nossa fala cotidiana. Em algumas culturas, “Oh God!” é uma expressão gritada na hora do orgasmo (o que não é de todo ruim, pois o prazer é uma dádiva divina). Não, o problema não é a ligação do nome com o prazer, mas a banalização do nome, especialmente quando o prazer alcançado não tem nada a ver com a vocação divina para o prazer. No Brasil, expressões como “meu deus”ou “ai meu deus” (e semelhantes), tornaram-se interjeições proferidas a qualquer momento, ao ponto de não sabermos mais quando têm a ver com o clamor e a oração ou quando são apenas um substituto para um palavrão, ou outra interjeição qualquer.

Não! Não vou concluir o post com uma lição de moral. A questão aqui é teológica. A grande blasfêmia, a grande negação desta palavra do Decálogo está no modo metafísico da teologia. Que expressão majestosa, cheia de pompa e circunstância. Mas que é esse tal de “modo metafísico” da teologia? Uma teologia é metafísica quando ela é tão forte, tão cheia de si, tão segura e arrogante, que controla o Nome e o reduz a conceitos, modos de expressão litúrgica, experiências, doutrinas ou equivalentes. Em outras palavras, uma teologia metafísica chama tanto a atenção para si mesma, que esquecemos de Deus – ou, talvez melhor dizendo – confundimos a teologia com o próprio Deus e cremos mais na teologia do que em Deus.

Uma teologia que leva a sério esta terceira palavra do Decálogo suspende a certeza certa e forte sobre o Nome e fala de Deus em uma reverente atitude de certeza incerta. Certeza, não conceitual, mas pessoal – quando me perguntam sobre as provas da existência de Deus, só tenho uma: “conversamos diariamente” (uma prova que não prova nada, convenhamos!). Incerta, não por ignorância, mas por fé: “certeza do que esperamos, convicção do que não vemos”. Uma boa teologia, para mim, é uma teologia pós-metafísica, não-metafísica, ou fraca (ou qualquer outro rótulo que você preferir). É uma teologia que não chama a atenção para a sua própria palavra, mas encaminha a atenção para a palavra inefável (indizível) – o Nome. É uma teologia repleta de certezas incertas, que faz com que as pessoas que a lêem tenham mais perguntas do que respostas, mais admiração e espanto do que conhecimento sólido e definitivo; mais reverência e humildade do que intimidade e familiaridade com o Nome. Ou seja, uma boa teologia não carrega o Nome para a infâmia – se ela for para o Hall da Infâmia, irá sozinha. Mas, se chegar ao Hall da Fama, estará em excelente companhia!

4 comentários:

  1. Algumas vezes me pergunto sobre essa reverencia exagerada com o nome de Deus por parte dos judeus. Pareceu-me sempre exagerada e irracional. Até porque em pronunciando-o, faço ou entro em uma “aposta, uma descrição de caráter, uma declaração de identidade” do divino que se pronunciou desde o inicio como aquEle que deu-me do que só Ele tem ( prestou atenção na ênfase do “E”?). Então se “carregar o nome divino é carregar a identidade divina, carregar a sua reputação, a sua respeitabilidade, (e) a sua legitimidade”, parece-me que eu estaria dentro do que Ele (novamente o “E”) mesmo desejou e determinou como seu representante legitimo. Neste sentido eu deveria de fato carregar este nome, ostentar nossa identidade divina. E pronunciá-lo parece-me que de fato era sua intenção, seria legitimo e não seria de forma alguma um perigo a sua respeitabilidade.
    Na verdade eu fico zangado é com a minha irracionalidade com a falta de exagero que deixo ter quando pronuncio: Deus. Ou seria melhor dizer DEUS? Algumas vezes penso que o que eu sinto na verdade é uma inveja, uma dor de cotovelo contra quem soube ou sabe mais sobre esse Deus do que eu.

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  2. Júlio,

    Apreciei imensamente tua mensagem. Penso que ela é representante de um grupo de biblistas/teólogos/pensadores cristãos da atualidade que entendem ser a teologia "um caminho" que "pode" nos ajudar em nossa vida cristã, mas que, ao mesmo tempo, afirmam categoricamente que Jesus Cristo é o "unico caminho" e que o discipulado, com seus desafios e dúvidas, não pode ser substituído por construções lógicas que pretendem tornar Deus previsível.

    Obrigado pela lucidez e relevância de tua reflexão.

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  3. Olá Robson,
    Acho que mais do que reverência, é o reconhecimento de que nós sempre tentamos controlar Deus com nosso discurso e nosso comportamento.
    Uma vez que "Deus" não é o nome de "Deus", pronunciar essa palavra não entra no "tabu do nome".
    Por outro lado, se o que você faz na vida é tentar carregar o nome para a fama, não se preocupe com quem sabe mais ou menos; nem se você sabe o suficiente. Como diria Jesus, "basta a cada dia o seu mal...".

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