Do ponto de vista abstrato, o tema deste post é "o que é ser humano". Trazendo para um espaço mais concreto e cotidiano, o tema pode ser descrito como "que posso esperar da minha vida?", ou, se você for uma pessoa mais proativa: "como conduzir a minha vida a fim de chegar aonde desejo?" Tratarei desse tema teologicamente.
Começo com as expectativas. Uma das descrições possíveis da pessoa humana à luz da Escritura cristã é a de que nós somos seres desejantes, seres cheios de expectativas, atraídos ao futuro, ao desconhecido, ao desafiador. Um exemplo dessa característica humana na Bíblia é o relato do "pecado" de Adão e Eva, em Gênesis capítulo 2. Atraídos pela expectativa de serem como deus, ambos decidiram comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tradicionalmente, a leitura desse texto bíblico nas igrejas cristãs ressalta apenas o aspecto negativo do pecado - na tradição calvinista, uma de suas correntes teológicas afirma inclusive que o ser humano é "totalmente depravado", ou seja, que mesmo quando faz o bem, o mal está presente.
Penso que devemos olhar para o texto a partir de outro ponto de vista - o de quem procura descobrir o "bem" no "mal" praticado por Adão e Eva (representantes simbólicos de toda a humanidade). O "bem" nesse mal é o deixar aflorar o desejo, a pulsão para a vida além da rotina, para além do cotidiano, para além da mesmice. Adão e Eva, humanos, buscam transcender a si mesmos, procuram na sabedoria e no poder (a serpente é símbolo dessas duas práticas humanas) um caminho para, simplesmente, ir além.
Onde, então, o "mal" nesse "bem"? No excesso do objeto desejado, na expectativa absolutamente impossível de ser atingida, no exagero de transcendência almejada. "Querer ser como deus" é o objeto excessivo, insustentável, inatingível, impraticável. Exagero fruto de menos sabedoria, de menos inteligência, de menos percepção das possibilidades e limites da aventura da existência humana. Deixe-me dar um exemplo extraído do campo dos esportes. O futebol é uma dimensão integrante da cultura e da identidade brasileiras. A tal ponto está internalizado em nosso modo de ser que, para muita gente, o Brasil (a seleleção de futebol, que não é o Brasil, convenhamos...) tem a obrigação de jogar bem, bonito, dar espetáculo e ainda ganhar a Copa do Mundo - "A copa do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa...". Expectativa completamente excessiva, exagerada - por isso, tanto choro e ranger de dentes quando deixamos a Copa apenas entre os oito melhores times do mundo. No esporte, perder faz parte do que deve ser esperado. Quem não sabe cultivar a expectativa da derrota não consegue, também, encontrar os limites da expectativa da vitória.
Seres desejantes que constantemente tropeçamos na realidade. Uma palavra tão imponente quanto indefinível. Não interessa entrar nos detalhes da reflexão filosófica sobre a realidade. Sejamos mais econômicos. Realidade é o que está entre nosso desejo e sua consumação, entre nossa expectativa e sua realização. Por isso falamos em "choque de realidade", que se dá quando o desejo não é consumado, a expectativa não é realizada, a transcendência não é alcançada.
Voltando para a teologia do humano na escritura cristã, a realidade com que temos de lidar em nossa condição de desejantes é a da morte, a da finitude, a da incompletude e imperfeição de nosso modo de ser e viver. Morte que, de inúmeras maneiras, se instala nas sociedades e suas economias, culturas, estruturas políticas, relações interpessoais, instituições, etc. Por isso, imagino, é que o autor de Eclesiastes escreveu que é melhor estar na casa do luto no que na da alegria - na casa da alegria o desejo não encontra limites, mas na casa do luto encontramos sabedoria para temperar nosso desejo com a dose certa de realidade.
Terminando ...
Parece-me que vivemos em uma época cultural em que a sabedoria do luto se esvaiu. Foi trocada pela excessividade da alegria, do prazer, da adrenalina. Excesso de consumir - coisas e pessoas, sonhos e ilusões, experiências e sensações. Exagero de transcendência - transcender a nossa finitude, encontrar o espaço ilimitado do desejo nunca mais postergado, sempre realizado na próxima compra, no próximo consumo, na próxima sensação ...
Tornamo-nos algo-além-do-humano e, assim, menos-do-que-humano; em uma paródia infeliz do sonho ambíguo de Nietzsche - das Übermensch. Ainda nietzscheanamente falando - nossa cultura matou Deus, e colocou no lugar dele o "sonho de consumo": o desejo ilimitado, a expectativa irrefreável, a transcendência inalcançável. Ao invés de irmos ao luto do divino, festejamos a sua ausência. Precisávamos, apenas, de amor à sabedoria - mas acabamos nos enredando nas "logias" (tecno-, -sofia, teo-, bio-, etc...). Imagino que se voltarmos à simplicidade do desejo-em-simplicidade, encontraremos formas muito mais interessantes e auto-realizadoras de satisfação.
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