sexta-feira, 30 de abril de 2010

Teologia e Trabalho

Amanhã é feriado! Que droga! Feriado no sábado é o mesmo que dia útil ...

Deixando de lado a preguiça... Amanhã se comemora o Dia do Trabalhador (ou do Trabalho). Data comemorativa dos movimentos de trabalhadores em busca de justiça social, em uma época na qual se acreditava que "o trabalho enobrece", que trabalhar é a vocação do ser humano (por isso os movimentos feministas lutam pelo direito da mulher trabalhar e ser adequadamente remunerada, juntamente com o reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho).

A teologia cristã tem uma relação ambígua com o trabalho. Por um lado, seguindo Paulo, se defende que cada pessoa tem de trabalhar, pois "quem não trabalha não tem direito de comer"; com base no Gênesis afirma-se que o trabalho é modelado no próprio Deus que trabalhou para criar o mundo (aqui o Judaísmo se diferenciava do pensamento greco-romano, para o qual o trabalho "braçal" era indigno dos cidadãos, devido apenas pelos escravos). Por outro lado, o trabalho está colocado debaixo de maldição desde a infame "Queda" de Adão e Eva - trabalho do homem com suor e canseira; trabalho de parto da mulher com dores e suores.

Hoje em dia as coisas estão diferentes. O "trabalho" já não recebe o mesmo valor "enobrecedor" de antigamente - tem mais valor o consumo, a criatividade, o empreendedorismo, o lazer. Mesmo assim, a economia capitalista gira ao redor de trabalho (assalariado ou não) e de seu doppelganger (duplo) o desemprego.

Nessas novas condições,como seria uma teologia cristã do trabalho? Alguns palpites: (1) o trabalho não é a vocação humana - trabalhamos para viver; não vivemos para trabalhar; (2) o descanso é a vocação humana, pois Deus abençoou o dia do descanso; só que descanso "cristão" é prática de solidariedade, de amizade, de amor, de companhia, fidelidade, e coisas afins que fazem da vida algo bom de ser vivido; (3) todo trabalho digno merece ser reconhecido, independentemente de sua classificação quantitativa pela economia capitalista - de fato, os trabalhos mais dignos tendem a ser os mais mal remunerados - enquanto os lazeres que se tornam em trabalho rendem fortunas; (4) trabalhos dignos são as atividades que tornam melhor a vida das pessoas e das sociedades - acréscimos qualitativos de saúde, moradia, alimentação, cultura, educação, bem-estar, autonomia, interdependência, ecologia ...

Você tem algum palpite para somar?

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Pecado, sexofobia & homofobia

Como prometi há algum tempo, volto ao tema da homofobia. A "neura" cristã com a sexualidade, hoje em dia, tem como seu principal sintoma a homofobia. Joga-se a "culpa" sobre os homossexuais, que resolveram fazer movimento social, lutar por seus direitos civis, pessoais, culturais. Aí o povo crente fica assustado. A presença pública de homossexuais faz com que a sexofobia cristã se reacenda e se reformule como homofobia. Este é um exemplo clássico de transferência de um temor para outro, a fim de resolver (de forma errada) o primeiro temor. Fazendo da homossexualidade o alvo da denúncia contra o pecado nos esquecemos da velha e constante sexofobia. Ao invés de lidarmos com o nosso velho e perseverante problema, atacamos um novo "inimigo".

Em vários lugares da Bíblia se afirma que quem segue a Deus não precisa viver com medo. Já está mais do que na hora de nos livrarmos da sexofobia, o que jamais conseguiremos através da homofobia. Um medo apenas pode substituir outro medo, jamais vencê-lo. De medo em medo caminhamos para uma vida triste, enfadonha, acusatória, cheia de ilusões. É hora de trocar o medo pela coragem. Pela coragem de ser feliz, pela coragem de assumir o prazer, pela coragem de viver plena e saudavelmente a sexualidade.

É hora de trocar o medo de errar pela coragem de acertar. Como acertamos? É uma antiga e sempre desafiadora lição, repetida à exaustão na pregação e na teologia cristãs. Acertamos quando amamos o próximo. O problema maior consiste em sabermos quem é o próximo. Ao respoder a essa pergunta, certa vez, Jesus contou uma parábola, que a tradição chamou de a parábola do bom samaritano. A parábola ensina que quem amou o próximo foi o "samaritano", aquele que era odiado, rejeitado e demonizado pela religião oficial da época de Jesus.

Quem tem olhos para ler, leia!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Sexo é Pecado. Sexo & Pecado. Sexo não é Pecado.

Na moralidade das igrejas cristãs ocidentais, a sexualidade é colocada lado a lado com o pecado. A antiga e maliciosa (se eu fosse psicanalista poderia me divertir muito aqui "analisando" os responsáveis por essa interpretação) leitura de Gênesis 3 que intepreta o pecado "original" como de natureza sexual, apesar de desacreditada pela exegese acadêmica, ainda mantém o seu papel determinante na moralidade cotidiana dos membros de igrejas cristãs. Essa leitura se mantém, entre outras razões, porque é apoiada por outro erro comum no pensamento moral das igrejas cristãs.

Esse erro tem a ver com o conceito de pecado. O conceito de pecado é fundamental para a práxis e para a teologia cristã, entretanto, é um dos conceitos mais mal entendidos e utilizados no dia-a-dia. O erro mais comum é reduzir o conceito de pecado ao seu âmbito ético-moral. Assim, pecado é fazer coisas erradas, imorais, sem ética. Pecado, então, são os pecados que cometemos e os pecados que cometemos são de natureza predominantemente moral. E o pior pecado que cometemos são os pecados sexuais, desde que Adão e Eva descobriram que estavam nus. O círculo vicioso está, assim, completo.

Pecado deve ser distinguido de pecados. Pecado e pecados não podem ser reduzidos à moralidade. Pecado e pecados são, acima de qualquer outra coisa, conceitos que tratam da relação do ser humano com o Criador e, a partir dessa relação primária, da relação do ser humano consigo mesmo, com o próximo-humano e com o próximo-natureza. Pecado (sem o s do plural) é uma estrutura da vida humana. O ser humano, criado finito, é pecador exatamente porque é finito. A finitude humana é a raiz do pecado. O ser humano é pecador por que, sendo finito, não admite viver a sua finitude. "Querer ser como Deus" é o que define o Pecado. Pecado é não aceitar a finitude e desejar a infinitude da Criadora do mundo. (Trocar de "gênero" ao falar de Deus é um exercício de auto-crítica, para nos lembrarmos de que Deus não é "macho" nem "fêmea", mas criou macho e fêmea à Sua imagem.)

Pecados são todos os atos que cometemos na tentativa de eliminar a nossa finitude. Pecado tem a ver com a "transcendência", o desejo de transcender nossos limites como criaturas; transcender esses limites sozinhos, sem a comunhão com Deus e com a Criação. Dentre esses atos, alguns possuem uma dimensão moral predominante, outros não. E nessa luta contra a finitude, a sexualidade não está, definitivamente, do lado do pecado. Somos seres sexuados "por criação" e não "por queda". As narrativas bíblicas sobre a criação colocam a sexualidade no lado da "imagem e semelhança de Deus" e no lado da bênção (ou será que poderíamos "ser fecundos, multiplicar e encher a terra" sem a relação sexual?), jamais no lado do pecado.

Existem, ou não, pecados sexuais? Claro! Assim como existem pecados ligados à amizade, ao trabalho, ao comércio, à política, etc. etc. etc. Não há nada de essencialmente pecaminoso na sexualidade que faça com que ela deva ser controlada. Aliás, em o Novo Testamento se fala em controlar a "língua", e não com conotação sexual, e sim, com o sentido de cuidarmos de não ofencer a outras pessoas com o que falamos. É claro, então, que não há pecados "sexuais"! (Note o paradoxo, não a contradição). Há pecados. (ponto final) Pecados são todos os atos que impedem a realização da criação enquanto Criação divina, enquanto harmonia relacional, amizade entre Criador e criaturas, criaturas e criaturas. Dentre esses atos, há alguns de natureza sexual, que não têm nada de mais pecaminoso do que quaisquer outros atos pecaminosos, atos que quebram a harmonia entre os seres viventes, ou seja, atos que demonstram o não-cuidar do próximo-humano&natureza como cuidamos de nós mesmos; não amar o próximo-humano&natureza como amamamos a nós mesmos.

Por causa desse velho e persistente erro, a moralidade sexual nas igrejas cristãs fica pendurada no conceito de casamento. O casamento é a panacéia mágica contra o pecado "sexual". Antes de me casar li um livro sobre sexo, escrito por um fundamentalista norte-americano. Depois de explicar todos os pecados sexuais, o autor ensinava que "no leito conjugal tudo é permitido, com respeito mútuo". Ora, é o leito "conjugal" ou o "respeito mútuo" que torna "tudo permitido"? Ou será que não é possível um "ménage à trois" com "respeito mútuo" no leito "conjugal"? Ou, não existe estupro legitimado pelo leito "conjugal" e pelo "respeito" da esposa ao marido, que cumpre sua "obrigação" de mulher (assim se falava no passado para as jovens esposas [só no passado?])? Ou, então, por que não haveria "respeito mútuo" em uma relação sexual sem o "casamento"? Enfim, por que uma cerminônia cultural e um contrato jurídico fariam de um pecado um não-pecado?

Hoje em dia muita gente coloca o "amor" no lugar do casamento. Só que é um amor muito pequenininho de tão transcendental. Amor que não passa de paixão e desejo. "Eu amo" é apenas outro nome para "eu quero". Ou será que quando um carinha (ou uma carinha) coleciona os troféus de suas conquistas ele (ou ela) está colecionando "amores"? Ou será que um pedófilo está justificado pelo que faz porque "ama" as criancinhas? Ou será que um estupro "amorosamente" motivado é menos do que um estupro? Enfim, por que um sentimento fugaz faria de um pecado um não-pecado?

Sexo não é pecado, mas pode ser transformado em pecado, assim como qualquer outra relação humana pode ser transformada em pecado. Quando conseguiremos nos livrar da "neura" em relação ao sexo?

terça-feira, 27 de abril de 2010

Quando a fé não faz diferença

Um dos craques do Santos, "menino da Vila" Neymar, é crente de uma igreja batista em São Vicente. Em recentes entrevistas, o rapaz declarou sua fé e afirmou "pagar" o dízimo fielmente todo mês, desde que começou a trabalhar, afinal de contas "Deus deu tudo pra ele". Agora o dízimo dele é de 40.000 reais e a igrejinha está reformando templo. Até aqui nada de mais, nem de menos.

Mas ele, Neymar, continua - já comprou um baita apartamento, um carrão de 140 mil, mas o que queria mesmo era uma ferrari ou porsche; não tem título de eleitor e nem queria ter, não sabe quem é candidato à presidência, nem quer saber ...

Moral da história: de que adianta ter fé, se não passa de um medíocre jovem consumista, alienado, sem projeto relevante de vida? Ah! Neymar, nada contra você, pois você é apenas mais um alienadinho sem visão de vida que as igrejas estão formando por aí.

Mas agora que tem dinheiro, não dava pra comprar um pouco de sabedoria? Se não pra você, pelo menos pro pastor de sua igreja ...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Fé e eleições - Governante não é Messias!

Uma das características da mentalidade política na cultura brasileira é a crença no papel messiânico dos governantes. Há vários estudos antropológicos, sociológicos e políticos que tratam do tema e mostram que esta é uma das heranças da matriz cultural cristã-portuguesa presente na formação da sociedade brasileira, que encontrou um terreno propício no contato (nada amistoso, é claro) da cultura portuguesa com as culturas dos povos indígenas que habitavam esta terra.
Presente até hoje nas tomadas de decisão de eleitores, o messianismo é uma crença mediante a qual se espera dos governantes que resolvam, de forma quase mágica, os problemas da nação (ou da parte da nação, no caso de eleições locais e reginais). O messianismo transforma as eleições em uma prática mais personalista do que política, de modo que são fatores da biografia do candidato(a) que têm mais peso na hora da decisão sobre o voto.
Entre outras razões, por causa do messianismo é que fiz um primeiro post sobre o tema afirmando que fé e eleições não têm nada a ver. O problema prático é que têm! A fé messiânica é muito mais decisiva na tomada de decisão do que a deliberação política propriamente dita. Essa fé messiânica, como um fator cultural, transpassa as religiões formais dos brasileiros e por isso afirmei que fé e eleições não têm nada a ver. Não é a "fé formal" que tem mais peso na hora de decidir, é a fé "cultural", trans-religiosa, supra-denominacional que tem o peso decisivo. É a fé cantada por Gil, "andar com fé eu vou, a fé não costuma falhar".
Infelizmente, a fé falha! Sem participação cidadã crítica e consciente governante nenhum resolve problemas de forma quase mágica.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Fé e eleições - Votarei na candidata Marina Silva ...

Ei, o voto é "secreto". Nunca entendi direito essa frase. Como o voto pode ser secreto se ele tem a ver com a gestão pública? Ah! um cientista político logo iria me ensinar: "o voto é secreto para que o eleitor tenha liberdade e não seja obrigado a votar por motivos ilegítimos...". Bonito, mas não me convence.
É claro que existem formas de pressionar e obrigar pessoas a votarem neste ou naquele candidato - entre elas a coação com base na punição pós-voto.Por isso, ninguém precisa saber em quem eu votei.

Mas isto é diferente de dizer "voto é secreto". O voto é público e em uma democracia legítima ninguém precisaria ter medo de declarar publicamente sua opção eleitoral. Mas, o que torna legítima uma democracia? Será o "segredo" do voto? Ou a legitimidade da campanha? Será a falta de razões para votar neste ou naquele candidato, ou as boas razões para votar nesta ou naquela?

Votarei na senadora se ela for candidata. Por que ela é evangélica? Claro que não. Por que ela é mulher? Também não. Por que ela vem da periferia do Brasil? Também não. Por que ela foi oprimida? Não. Há milhares de pessoas que se encaixam nessas categorias e eu não votaria nelas por essas razões. A ministra Dilma é mulher, mas eu não votarei nela. Não votarei nela por outras razões e não pelo fato de ela ser mulher.

Voto não é em "pessoa física". Voto é em "pessoa política". Como pessoa política a senadora Marina Silva é, a meu ver, neste momento, a opção mais progressista, mais utópica, mais esperançosa. Votarei na senadora Marina Silva pelas mesmas razões que eu votei duas vezes no candidato Lula - por que a esperança vence o medo, por que um mundo melhor é possível, por que nada será como antes, amanhã. talvez você retruque, com alguma razão, "mas ela representa o novo exatamente por que é mulher, da periferia, evangélica ...". De novo eu responderia: "há milhares de pessoas que se encaixam nessas categorias, mas eu não votaria nelas". Mas é claro que eu reconheço a importância dessas categorizações, a importância da biografia dos candidatos e candidatas. Só que eu também sei que "gente boa" pode ser "político ruim". Ou você ainda pensa que "irmão vota em irmão, por que é irmão e é bão"?

Os demais candidatos, pelo menos até agora, representam "mais do mesmo". Em especial, a candidata Dilma, embora o "mesmo" que ela represente seja muito melhor do que o "mesmo" que outros representam. O Brasil precisa menos do mesmo e mais do novo. Mais educação, mais saúde pública, mais saneamento, mais moradias, mais proprietários de terras... Os oito anos lulistas foram um grande avanço e deixaram esta lição: "a esperança vence o medo, vence o mesmo".

A senadora irá ganhar? Se ganhar conseguirá governar? Já antecipo muitas das objeções, já estou com raiva das insinuações baseadas nas roupas da senadora, mas pelo menos não se poderá acusá-la de ser "um sapo barbudo". Provavelmente não ganhará. Se ganhasse, não tenho nenhuma garantia de que faria um bom governo (aliás, quem pode oferecer tal tipo de garantia?). E daí?

O voto é uma expressão de esperança. Esperança crítica, sim, mas não menos esperança!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Fé e eleições

Ai ai! Logo logo começarão os infames horários eleitorais nos lembrando de que a campanha em busca de nossos preciosos votos está em pleno vapor. É claro que a campanha já começou faz tempo, só que ela tem outro nome, para que as pessoas que a fazem não precisem ficar pagando multas ou indo para a cadeia (? cadeia para político?).
Voltarei a este tema muitas vezes, é claro. Agora, só um lembrete. A fé não tem nada a ver com a decisão eleitoral!?
Não estou sendo muito radical? Acho que não. A fé não tem nada a ver mesmo com as minhas preferências eleitorais.
Então, fé e política não tem nada a ver uma com a outra? Aí a coisa é outra! Fé e política têm tudo a ver. Por que ambas se dirigem a um projeto de vida futuro, apostam em uma novidade, defendem uma utopia, apostam em um mundo novo (mesmo que seja um novo igual ao mais velho dos velhos...).
Exatamente porque fé e política são tão próximas uma da outra é que a fé não tem nada a ver com a decisão eleitoral - ou pelo menos não deveria ter nada a ver.
Decisão eleitoral não se toma a partir da fé, mas a partir da crítica, a partir do discernimento. Não nos podemos deixar levar pela fé neste ou naquele político, neste ou naquele partido, nesta ou naquela proposta de nova sociedade.
"Se é só para esta vida que esperamos em Cristo, somos de todos os homens os mais dignos de lástima" (I Co 15,19)
Voltarei ao tema. E você, que acha desta afirmação radical: fé e decisão eleitoral não tem nada a ver?

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Teologia da Violência - 6. A violência Subjetiva

[Com este post termino a série sobre violência. Esta série é de textos mais técnicos, mais exigentes, e talvez não muito comuns em blogs. Mas acredito na inteligência de quem lê e, afinal de contas, se me deu trabalho para escrever, por que não dar trabalho para ler?]
O ser humano é um ser psicossocial, que define sua identidade a partir dos relacionamentos interpessoais. Essa característica da intersubjetividade está inscrita em cada indivíduo, em cada pessoa. Em linguagem filosófica, a pessoa humana vive na tensão entre ipseidade (viver para si mesmo/completar-se em si mesmo) e alteridade (viver para o outro/completar-se no outro). Essa finitude (interdependência), “ou insustentável leveza do ser”, estrutura todas as relações humanas e pode, por sua abstração, nos ajudar a descrever a violência, não como uma patologia, mas como uma possibilidade inerente à existência psicossocial humana – em concordância com a descrição teológica previamente elaborada.
O esquema dialeticamente tenso da existência humana como ipseidade-alteridade (si-mesmo/outro) nos permite oferecer uma definição tentativa da violência subjetiva: violência subjetiva é a resolução (dissolução) da tensão entre alteridade e ipseidade na pessoa, seja com a concentração no pólo da ipseidade (ser-para-si-mesmo-apenas; ser-contra-o-outro), seja no pólo da alteridade (ser-para-o-outro-apenas; ser-contra-si-mesmo). Resolução (dissolução) esta que, ao final, faz, no pólo da ipseidade, do si-mesmo um outro para si; e, no da alteridade, o outro um si-mesmo – em síntese, neutraliza a diferença e afirma a mesmidade, impedindo-nos, assim, de concretizar a igualdade universal afirmada eticamente pela descrição filosófico-moral da Modernidade ocidental.
Conseqüentemente, ação violenta é aquela que, dissolvida a tensão da pessoalidade, se concretiza como ação estratégica (ego- ou alter-estratégica). Seguindo Habermas, define-se ação estratégica como aquela que se efetua não mediante a comunic-ação (a comunhão das diferenças), mas mediante a domin-ação (a hierarquização das diferenças). Ação estratégica é ação que faz do outro, ou de si mesmo, instrumento para a consecução de fins. A ação ego-estratégica é aquela mediante a qual uma pessoa instrumentaliza outra(s) com vistas a atingir seus próprios propósitos, desconsiderando os propósitos, interesses e possibilidades das pessoas instrumentalizadas. A ação alter-estratégica, por sua vez, é aquela mediante a qual uma pessoa faz de si mesma instrumento para a consecução dos propósitos de outra(s), desconsiderando os seus próprios propósitos, interesses e possibilidades.
Sistêmica e simbolicamente legitimada, a ação estratégica de cada pessoa não é percebida enquanto tal e o sujeito da violência sempre a justifica e culpabiliza um outro, reproduzindo o comportamento adâmico descrito em Gn 2-3. A violência subjetiva é, assim, internalização corporificada da violência objetiva e a retro-alimenta no círculo vicioso sem fim da violência da criatura finita que recusa sua finitude. A violência criminal, que mais nos assusta hoje em dia, conforme apresentada pela mídia como a irracionalidade dos marginais diante de uma sociedade legalmente estabelecida, não passa de uma das formas de violência e não pode ser entendida como a pior ou como a forma única da violência subjetiva. (É claro que a questão do crime é bastante complexa e também não posso, aqui, oferecer uma discussão adequada do mesmo. Entretanto, sugiro a re-leitura de um antigo texto filosófico que pode, talvez, nos ajudar a encontrar melhores maneiras de combatê-lo do que meramente “mais polícia e mais cadeia”. O texto é HONNETH, Axel: A Luta pelo Reconhecimento (Loyola), que relê HEGEL, GEORG F. W. Natural Law, do início do século XIX.)

terça-feira, 20 de abril de 2010

Teologia da Violência - 5. A violência sistêmica

A violência sistêmica, por sua vez, é a violência instalada no próprio funcionamento da sociedade e que forma, com a simbólica, um círculo vicioso no qual ambas se retro-alimentam e se justificam. Assim como a violência simbólica se faz passar desapercebidamente, “a violência sistêmica é semelhante à notória ‘matéria negra’ da física: a contraparte de uma violência subjetiva por demais visível. Ela pode ser invisível, mas deve ser levada em consideração se queremos dar sentido ao que, de outro modo, parecem ser explosões ‘irracionais’ de violência subjetiva” (ZIZEK, op. cit., p. 1-2.). Desde os primeiros grandes teóricos dos Estados modernos, a presença da violência é exorcizada. A teoria do pacto social, por exemplo, envia a violência para o “estado de natureza” e define a sociedade legitimamente ordenada como uma sociedade em que, mediante o pacto, a violência originária é expulsa. Não é possível, aqui, discutir em amplitude esta questão. Remeto aos importantes livros de Charles Taylor, As fontes do Self, e Jürgen Habermas, Direito e Democracia, para discussões amplas e profundas do assunto. Para uma descrição bem sintética, pode-se ver, por exemplo, COSTA, Jurandir Freire. “Transcendência e Violência”, disponível no site: http://jfreirecosta.sites.uol.com.br.
A teoria sociológica de Jürgen Habermas é de grande utilidade para descrevermos a violência sistêmica e sua relação com a simbólica. Segundo Habermas, a sociedade se compõe de duas estruturas complementares: o mundo-da-vida e o sistema. O mundo-da-vida é a estrutura simbólica da sociedade – a cultura, as idéias, os valores que dão sentido à vida em comum. O sistema é a estrutura material da sociedade – a economia, o Estado, as instituições científico-tecnológicas e as midiáticas, que asseguram a produção, distribuição e reprodução de bens materiais e simbólicos.
Ao analisar as sociedades modernas, Habermas constata que sua característica fundamental é a de que a macro-estruturação sistêmica coloniza o mundo-da-vida; ou seja, as interações pessoais simbólicas são realizadas de acordo com a lógica sistêmica (estratégia, ganho, dominação impessoal), e não com a lógica mundivital (diálogo, cooperação, intersubjetividade). Dessa forma, as relações pessoais são transformadas em relações objetuais, as relações são coisificadas e naturalizadas violentamente.
A violência sistêmica, assim, é a estruturação das relações pessoais a partir dos imperativos impessoais do sistema, a subjugação do sujeito à lógica dos meios sistêmicos: o dinheiro, ou o poder, ou a tecnologia, ou a mídia – que se perpetua mediante a “eficácia” do sistema capitalista democrático (cujas crises endêmicas sempre são reduzidas a episódios superficiais). A violência sistêmica, assim, possibilita e é realimentada pela violência simbólica que transfigura a ineficácia sistêmica em eficácia, a injustiça social em legalidade, a opressão em falta de iniciativa ou de capacidade dos oprimidos/excluídos em aproveitarem as oportunidades que o livre mercado oferece.
Podemos complementar a descrição habermasiana com uma contribuição pós-hegeliana: “A regra fundamental de Hegel é que o excesso ‘objetivo’ – o reinado direto da universalidade abstrata que impõe sua lei mecanicamente e com total desconsideração pelo sujeito aprisionado em sua rede – é sempre suplementado pelo excesso ‘subjetivo’ – o exercício arbitrário, irregular do capricho. Um caso exemplar dessa interdependência é fornecido por Balibar, que distingue dois modos opostos mas complementares de violência excessiva: a violência ‘ultra-objetiva’, ou sistêmica, inerente às condições sociais do capitalismo, que envolve a criação ‘automática’ de indivíduos excluídos e dispensáveis – dos sem-teto aos desempregados – e a violência ‘ultra-subjetiva’ dos novos ‘fundamentalismos’ étnicos e/ou religiosos, em síntese, racistas”.
Conseqüentemente, a violência é endêmica ao sistema capitalista democrático, apesar de todos os esforços acadêmicos e jurídicos em nublar essa característica da articulação social no Ocidente. Os chamados Estados democráticos de direito, embora legalmente legítimos, são estruturalmente violentos, não só nascidos de uma operação violenta de transformação estrutural, mas também promotores de violência policial-militar legalizada e simbolicamente naturalizada. A não-participação política crítica e consciente da cidadania permite que o círculo vicioso da violência simbólico-sistêmica percorra livremente seu curso. Assim sendo, a concretização da democracia e da legalidade dependem da ação comunicativa dos cidadãos, resistindo à dominação sistêmica e enfrentando criticamente a dominação simbólica.

sábado, 17 de abril de 2010

teologia da Violência - 4. A violência simbólica

O olhar teológico nos permitiu categorizar a violência como busca da infinitude, como esforço para superação da finitude que nos caracteriza como criaturas, esforço para se tornar deus. Nesse sentido, a violência simbólica é a concretização do logos anthrópou alienado do logos theoû, da fala humana ilimitada, indisposta a entrar em diálogo com a fala divina que convida a criatura humana a falar-em-Seu-nome, indisposta a entrar em comunicação com o próximo humano na construção de uma vida sócio-cultural não-violenta. Violência que também pode ser descrita na linguagem crua de Tg 3,8: “mas a língua, nenhum homem a pode domar. É um mal irrefreável; está cheia de peçonha mortal”.
Usando terminologia metafórica, Pierre Bourdieu, um dos principais analistas da violência simbólica, fala da mesma como uma alquimia, derivada da hipocrisia estrutural instalada nas relações sociais, mediante a qual a sociedade honra “aqueles que a honram aparentando recusar a lei do interesse egoísta. O que se exige não é que façamos inteiramente o que é necessário, mas sim que, pelo menos, mostremos sinais de que nos esforçamos por fazê-lo” (BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Campinas: Contexto, 1990, p. 171). Mediante a violência simbólica, a violência sistêmica é legitimada e a violência dos detentores dos poderes sistêmicos é justificada e exorcizada, transformada em legalidade e estado de direito. Podemos comparar essa hipocrisia social com a hipocrisia religiosa denunciada no final do Sermão do Monte: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt 7,21-23ss).
Para Bourdieu, o “exemplo mais interessante dessa espécie de alquimia simbólica seria a transfiguração das relações de dominação e de exploração” (idem, p. 173). Na economia das trocas simbólicas, se pressupõe uma confluência de conhecimentos e reconhecimentos, de modo que “para que uma troca simbólica funcione, é preciso que ambas as partes tenham categorias de percepção e avaliação idênticas. Isso vale também para os atos de dominação simbólica que ... são exercidos com a cumplicidade objetiva dos dominados, na medida em que, para que tal forma de dominação se instaure, é preciso que o dominado aplique aos atos do dominante (e a todo seu ser) estruturas de percepção que sejam as mesmas que as que o dominante utiliza para produzir tais atos” (idem, p. 174).
Dessa maneira, a violência simbólica se apóia num reconhecimento que é, de fato, desconhecimento, dos fundamentos a partir da qual ela é exercida. Exemplos de violência simbólica (no tipo da dominação) em nossas sociedades ocidentais são: a dominação masculina, o paternalismo, a relação entre irmãos mais velhos e mais moços, o racismo, etc. “Para que a alquimia funcione, como na troca de dádivas, é preciso que seja sustentada por toda a estrutura social, logo, pelas estruturas mentais e disposições produzidas por essa estrutura social; é preciso que haja um mercado para as ações simbólicas conformes, que haja recompensas, lucros simbólicos, com freqüência conversíveis em lucros materiais, que se possa ter interesse pelo desinteresse” (idem, p. 175) – em termos neotestamentários, é necessário um mundo cegado por um falso deus (II Co 4,4).
“Um dos efeitos da violência simbólica é a transfiguração das relações de dominação e de submissão em relações afetivas, a transformação do poder em carisma ou em encanto adequado a suscitar um encantamento afetivo. O reconhecimento da dívida torna-se reconhecimento, sentimento duradouro em relação ao autor do ato generoso, que pode chegar à afeição, ao amor, como vemos com particular clareza nas relações entre gerações. A alquimia simbólica, tal como acabo de descrevê-la, produz, em proveito daquele que cumpre com esses atos de eufemismo, de transfiguração, de conformação, um capital de reconhecimento que lhe permite ter efeitos simbólicos. É o que chamo de capital simbólico, atribuindo assim um sentido rigoroso ao que Max Weber designava pela palavra carisma” (idem, p. 176).
Se olharmos para a formação sócio-cultural brasileira, veremos que esse tipo de dominação transfigurada emotivamente constitui o modo predominante do exercício do poder em nossa sociedade até o presente. Na sociedade brasileira o poder é exercido de forma autoritária em todas as suas instâncias, desde a relação familiar até a relação Estado-cidadão – entretanto esse autoritarismo é simbolicamente transfigurado na relação paterno-familiar, de modo que as pessoas dominadas não reconheçam a dominação nas relações. E mesmo no ambiente eclesiástico esse tipo de relação de poder é predominante, ao ponto que somente pastores(as) carismáticos (no sentido weberiano) são reconhecidos como verdadeiros líderes, como pessoas “com unção”.
A violência simbólica é fruto da estruturação social e lingüística no decorrer da história, de modo que os sujeitos sociais não a percebam como construção humana, mas a vejam como natural, algo que não pode ser evitado. “Para que o ato simbólico tenha, sem gasto visível de energia, essa espécie de eficácia mágica, é preciso que um trabalho anterior, freqüentemente invisível e, em todo caso, esquecido, recalcado, tenha produzido, naqueles submetidos ao ato de imposição, de injunção, as disposições necessárias para que eles tenham a sensação de ter de obedecer sem sequer se colocar a questão da obediência. A violência simbólica é essa violência que extorque submissões que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em ‘expectativas coletivas’, em crenças socialmente inculcadas. [...] A crença de que falo não é uma crença explícita, colocada explicitamente como tal em relação à possibilidade de uma não-crença, mas uma adesão imediata, uma submissão dóxica às injunções do mundo, obtida quando as estruturas mentais daquele a quem se dirige a injunção estão de acordo com as estruturas envolvidas a injunção que lhe é dirigida” (idem, p. 177).
Em síntese, a violência simbólica é a estrutura-estruturante da fala humana em sociedade e na história, mediante a qual a violência sistêmica é legitimada e naturalizada e a violência subjetiva é racionalizada como falha individual, patologia de grupos sociais marginalizados, atrasados, culturalmente inferiores e, assim, politicamente incapazes de conviver de forma não predominantemente violenta. Uma das conseqüências perversas da violência simbólica é a qualificação do senso crítico como rebeldia ou como teoria inútil, vendendo a velha e falsa dicotomia teoria-prática em uma nova linguagem - o que dá certo versus o que não dá certo.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Teologia da violência - 3. Deus mesmo se submete à violência

Os capítulos iniciais e fundantes do Gênesis definem o tom dos relatos posteriores sobre a fé em Deus. Fé marcada pela ambivalência e finitude, a ponto de que os próprios israelitas, outrora vítimas da violência faraônica, construirão uma religião na qual seu Deus é um Deus guerreiro, vingador, marcado pela duplicidade e ambivalência, favorecedor de um reino em detrimento de outros – a teologia das cortes israelita e judaíta. Religião oficial permanentemente contestada por profetas (desde Elias e Eliseu em Israel, até os profetas escritores de Judá), denominada como idolatria e injustiça, ruptura da aliança com o Deus que libertara os hebreus do Egito (libertação marcada, ela também, pela ambigüidade da violência contra os egípcios).
Essa longa e estranha história da violência divina só pode ser entendida a partir de seu desfecho: a morte do Filho de Deus enquanto sentença de morte contra a morte, juízo final sobre toda religião que imputa a Deus violência e justifica sua própria violência pela violência divina. Não podemos deixar de notar, entretanto, o quanto o evento-salvífico de Deus em Cristo é, ele mesmo, prenhe de violência, em que Deus mesmo é autor-vítima: (a) a violenta auto-negação do Filho na encarnação, um esvaziamento de sua condição divina para a condição humana de escravidão; (b) a violenta carreira terrestre do filho Jesus, em sua crítica radical à religião oficial de seu povo, climaxizando na violenta purificação do Templo e na violenta lição sobre o discernimento dos tempos (maldição da figueira); (c) o violento fim do Filho mediante a morte de cruz, passando pelo violento processo e ordálio, desembocando na livre aceitação, pelo Filho, da morte determinada pelo Pai.
Morte que é, paradoxalmente, desfecho de uma história da solidariedade de Deus com a vítima, história da infinita e inambígua fidelidade de Deus para com sua criação - do Deus que penetra na economia da violência para lhe tirar o sentido e a força e revelar sua face cruel e assustadora. Morte cujo sentido é multi-dimensional, como expressão da multi-dimensionalidade da superação divina da violência.
(1) Morte da violência sistêmico-simbólica, subjetivo-objetiva. A segunda parte do hino cristológico em Colossenses (v. 18-20) sintetiza a multidimensionalidade da vitória de Cristo sobre a violência. Ele é o primogênito dentre os mortos – por um lado, Jesus é o que vence a morte, pois é o primeiro a ressurgir para nunca mais morrer; por outro, Jesus assume a primogenitura temporal da morte, concretizando, historicamente, sua condição de primeira vítima da violência, visto que é o cordeiro de Deus eleito e crucificado antes da fundação dos séculos (1Pe 1,19-20; Ef 1,3ss). A novidade da interpretação cristológico-messiânica da criação-libertação é a imputação da violência contra o próprio Deus para antes da criação, indicando a vitória de Deus sobre a violência ainda antes dela existir – paradoxal afirmação da violência divina auto-infligida que elimina o poder da violência criatural. O ato subjetivo anterior ao tempo da violência divina rompe a circularidade infinita das dimensões subjetiva e objetiva da violência humana no tempo.
Morrendo na cruz pelos inimigos de Deus e, assim, trazendo a paz, Jesus morre a morte que despoja a violência sistêmico-simbólica de seu poder, no despojar dos principados e potestades (cf. Cl 2,15). Sistêmica, na medida em que o Império Romano trazia paz mediante a morte dos inimigos, mediante a conquista do território do outro, mediante a subjugação do outro ao seu poderio militar. Simbólica, na medida em que a pax romana era o logos legitimador da violência sistêmica, naturalizando a diferença sócio-cultural, fazendo do não-romano um ser inferior ao romano, sem paz, ou seja, marcado pela violência e, por isso, não vítima da violência militar romana, mas réu condenado e penalizado pela justitia romana.
(2) Morte da justificada violência legal da solidão cainita, pois Deus sofre conosco a violência, sofre-a como irmão-Abel (Hb 2,9-18), não mais como marca distante. Em Cristo, Deus assume a condição humana de praticante-vítima da violência e não só rompe o poderoso círculo vicioso da violência, como também rompe o poderoso efeito traumático do sobrevivente da vítima mortal da violência que sofre a solidão da perda, assim como derrota o traumático poder da internalização da violência sofrida pela pessoa que sobrevive à violência que lhe fora infligida.
Enquanto a marca protegia Caim da violência de outros, não permitia a Caim superar a culpa e o medo – efeitos internalizados do ato violento que cometera. A solidariedade de Cristo, assumindo integralmente nossa carne ao ponto de morrer, despoja também o poder da violência internalizada: a violência “interna, ou internalizada, refere-se à violência que assaltou a pessoa de fora e, então, tornou-se embebida dentro de seu corpo, mente e alma” (HESS, Cynthia. Sites of violence, sites of grace: Christian nonviolence and the traumatized self. Lanham: Lexington Books, 2009, p. 25). Em sua vida, morte e ressurreição terrenas, Jesus corporifica e exemplifica a práxis não-violenta a que todo ser humano é chamado para destruir o círculo sem fim da violência e, simultaneamente, indica as fontes humanas de força interna para vencer a violência – na companhia de Deus, como parceiro do Deus da vida e paz.
(3) Morte da violência da religião metafísica/infinita
Enfim, como bem percebeu um pensador não-cristão, “a morte de Cristo na cruz certamente significa que devemos, sem reservas, abandonar a noção de Deus como um cuidador transcendente que garante o final feliz de nossos atos, i.e., que garante a teleologia da história. A morte de Cristo na cruz é, em si mesma, a morte desse Deus protetor. É uma repetição do lugar de Jó: recusa qualquer ‘significado mais profundo’ que possa encobrir a realidade brutal das catástrofes históricas” (ZIZEK, Slavoj. Violence. Six Sideways Reflections. Nova Iorque: Picador, 2008, p. 180s).
Após séculos de casamento entre a teologia cristã e a metafísica grega, devemos nos libertar desse último elo da cadeia infinita da violência – a própria fé cristã que, violentamente, se subjuga a um modo de pensar que lhe é contrário e, assim, tornou-se parte do círculo vicioso da violência. O pensamento metafísico (Habermas), ou forte (Vattimo), ou ontoteológico (Heidegger) aprisionou a teologia cristã à cadeia sem fim da violência simbólico-sistêmica. Ao reduzir a teologia cristã a mera ciência e pensamento unificador, o modo ontoteológico de falar de Deus e de vivenciar a fé afastou-se do modo de pensar libertador da Escritura. Ao invés de encontrar na práxis amorosa o caminho para a superação da violência em todas as suas dimensões, buscou-o na prática cognitiva, recusando o diagnóstico paulino: “Pois do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça” (Rm 1,18).
Afastamento que revela a contínua incapacidade humana de lidar com a finitude e a ambivalência, tentando fazer de Deus o bode-expiatório de nossa adesão à violência como pretensa solução de nossa finitude. Afastamento que confirma a nossa incapacidade de aceitar a loucura e o escândalo da cruz (1Co 1,18-31), incapacidade que, mesmo fora do arraial, pode ser percebida na contemplação do Crucificado: “esse homem-Deus se envolve plenamente com o mundo, morre. Nós, seres humanos, ficamos sem nenhum poder superior vigiando sobre nós, ficamos apenas com o terrível peso da liberdade e da responsabilidade pelo destino da criação divina e, assim, pelo do próprio Deus” (Zizek, Idem, p. 184s).

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Teologia da Violência - 2. Religião, cultura e violência (Gn 4-9)

Violência que se perpetua, posto que o primeiro relato após a expulsão do Éden tematiza o assassinato de Abel (vazio/nada/vento) por seu irmão Caim (ferro/lança): Gn 4,1-16. Segundo o relato textual, Caim fica frustrado e irado porque Deus rejeita sua oferta sacrificial – Caim não consegue “agradar” a Deus (4,5) e não consegue entender porque Deus não se agradou de sua oferta, impedindo-o de consumar seu religioso desejo de satisfazer ao Pai (4,6-7). Oferta rejeitada sem qualquer explicação – violenta recusa de receber a adoração cainita.
A ira de Caim, dirigida contra Deus, é desviada para o frágil Abel, bode expiatório dessa divindade arbitrária e incompreensível - Deus irrazoável, Enunciador de um não, sem razão, ao adorador agradecido. Após matar Abel, interpelado novamente por Deus, Caim tenta se inocentar. Inventa um álibi para tentar encobrir a falta de solidariedade e o amor a seu irmão (4,9) – dando razão (racionalidade) ao ato mortal que recém cometera – embora ocultando a verdadeira razão do assassinato.
Deus julga e condena Caim, e exerce contra ele violência legalmente justificada (retribuição ao clamor do sangue) – sentença, porém, que não obedece ao padrão “olho por olho, dente por dente”, posto que não mata Caim, mas permite que ele continue vivo e seja entregue à sua própria falta de solidariedade (4,10-12). Apavorado, Caim clama, pois teme ser vítima do mesmo tipo de violência que cometeu. Deus ouve o clamor do assassino e o protege da violenta vingança (4,13-16; cp. Pv 20,22), e Caim passa a viver longe da presença de Deus, mas marcado pela ausente presença protetora de Deus: “O Senhor, porém, lhe disse: Portanto quem matar a Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse” (4,15).
O relato da descendência de Caim e do nascimento da civilização urbana (Gn 4,17-24) é marcado pela ambivalência: família e vizinhos são necessários para viver bem (4,17-22), mas também são ameaçadores. A cidade se torna o lugar da violência contra o próximo. A cultura se torna a justificativa da violência contra o próximo – negando-o como próximo e instaurando o círculo vicioso da violência-vingança-violência: “Disse Lameque a suas mulheres: Ada e Zila, ouvi a minha voz; escutai, mulheres de Lameque, as minhas palavras; pois matei um homem por me ferir, e um mancebo por me pisar. Se Caim há de ser vingado sete vezes, com certeza Lameque o será setenta e sete vezes” (4,23s)! Assim como a religião, cultura e civilização são fontes de violência, têm a violência incrustada em seu modo de existir.
O relato do dilúvio (caps. 6-9) tematiza a perpetuação da violência e sua escalada quase infinita. Nos v 1-4 o texto inicia o relato de forma enigmática: filhos de Deus se apaixonam por filhas dos homens e as tomam em casamento – obrigando Deus a emitir uma sentença de morte sobre a humanidade: “Então disse o Senhor: O meu Espírito não permanecerá para sempre no homem, porquanto ele é carne, mas os seus dias serão cento e vinte anos” (v. 3 – cf. a genealogia do cap. 5, com a duração quase milenar da vida antediluviana). Mas. Já não havia Deus estabelecido a sentença de morte quando da expulsão do jardim? Já não haviam morrido as pessoas antediluvianas, ainda que após centenas de anos de vida?
Após a introdução, o texto destaca o olhar de Deus: “Viu o Senhor que era grande a maldade do homem na terra, e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era má continuamente” (v. 5) e “Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra” (v. 12). Entre essas declarações da visão de Deus, reforçando o que fora contemplado, o texto afirma: “A terra, porém, estava corrompida diante de Deus, e cheia de violência” (v. 11). Literariamente, os v. 5-11 formam uma unidade textual cujo tema é a violência, enquanto o v. 12 inicia uma nova unidade textual, com vocabulário extraído da unidade anterior (o v. 12, note, repete a explicação do v. 11).
Deus, arrependido de ter criado o ser humano, decide destruí-lo de sobre a face da terra, juntamente com tudo o mais que existia, mediante um dilúvio. Entretanto, faz aliança com uma família e lhe ordena que construísse uma arca para se salvar e salvar a população animal. Ao final do relato do dilúvio, Deus avalia sua própria sentença judicial: “Sentiu o Senhor o suave cheiro e disse em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como acabo de fazer. Enquanto a terra durar, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite” (8,21-22). A maldade do homem, reconsidera Deus, não pode ser paga por toda a criação e, como o ser humano é o representante de Deus para administrar a criação, por amor à criação Deus decide suspender a sentença de morte.
Escandalosamente, o relato do Dilúvio introduz a ambivalência no próprio Deus – arrepende-se, pune, mitiga a punição mediante aliança, arrepende-se de ter punido, promete não mais punir com morte. Ambivalência que é resposta à ambivalência do humano, cuja inteligência é má desde a meninice – violência instalada no âmago do ser humano: o desejo e o pensamento do seu coração. O próprio relato da nova aliança de Deus com Noé e seus descendentes, em benefício de toda a terra, é eivado de violência (a maldição se instala na própria família de Noé) e marcado pela advertência divina de que todo assassinato será objeto da retribuição penal.
Nestes capítulos 4-9 de Gênesis, a violência é apresentada como fruto da incapacidade humana de lidar com sua finitude diante de Deus (criaturidade e morte) e de sua responsabilidade perante o próximo (amor e solidariedade), incapacidade inscrita no coração do ser humano, cujos pensamentos e desejos são permanentemente maus e corruptos - violentos. A ambivalência, assim, define o tom da religião, civilização e cultura: são, simultaneamente, busca de vida e tempo-espaço da violência. Por isso, o texto que relata o pecado originante o define como “querer ser igual a Deus”, o que permitiria ao ser humano a infinitude e não-ambivalência. Engano terrível, porém, pois o infinito Deus violenta a Si mesmo para superar a própria infinitude e não-ambivalência na criação do outro.
Diante de sua finitude e responsabilidade, o ser humano se torna violento e oculta sua violência mediante a religião, a civilização e a cultura. A violência está instalada em mim, em você, na sociedade, na cultura – enfim, em todas as realizações humanas, percepção que, embora fundada em outras fontes, é defendida por vários estudiosos da vida humana em sociedade, e nomeia as diferentes dimensões da violência = estrutural e sistêmica (embutida nos arranjos econômicos e políticos), simbólica (embutida nos arranjos linguageiros, culturais e científicos) – daí, violência objetiva – e violência subjetiva (a praticada por sujeitos específicos). Ou, como afirmara o filósofo crítico: “todo monumento de cultura é também monumento de barbárie” (W. Benjamin).
Talvez um filósofo judeu-europeu possa nos ajudar a sintetizar este drama teológico da violência: “Levinas nos convida a considerar um relato não-sentimental e desestabilizador da intriga e do drama da responsabilidade e testemunho que ele provoca. Em sua forma mais transtornadora, a violência não se dirige apenas contra a face do outro, contra uma face que é humana; ela também, como enfatiza Jean-Luc Nancy, ‘se origina de uma face sobre a qual a iniqüidade pode, ocasionalmente, ser lida como a devastação dessa mesma face’. Mesmo além desta distinção entre bem e mal, outra violência – a violência de um outro outro – espreita”. (VRIES, Hent de. Religion and violence: philosophical perspectives from Kant to Derrida. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2002, p. 133.)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Teologia da Violência - 1. Criação e violência (Gn 1-3)

A primeira tentação que devemos superar em um estudo bíblico sobre a violência é a de excluir Deus do âmbito da violência. Péssima estratégia, posto que o Deus testemunhado no Antigo Testamento destruiu a humanidade em um dilúvio, libertou os hebreus do Egito pela força de seu poder, culminando na mortandade dos primogênitos egípcios, ordenou a seu povo que exterminasse cananeus, é chamado de Senhor dos Exércitos que guerreia as guerras dos reinos de Judá e Israel. Igualmente péssima é focalizar a violência da divindade nesses episódios e desconstruí-los mediante uma releitura neotestamentária, ou retirar sua força descomunal mediante conceitos tais como o da revelação progressiva, ou o da acomodação divina. Se quisermos entender a relação entre Deus e a violência na Escritura precisaremos dirigir nossa atenção a textos aparentemente irrelevantes ao tema.
Podemos começar no princípio. Inusitadamente óbvia esta escolha. O relato poético da criação em Gn 1,1-2,4ª é excelente ponto de partida para o estudo da violência na Bíblia. O amoroso ato criador de Deus desvela um ato de violência contra o próprio Deus que cria um outro para Si, outro esse que “no princípio” era pura violência – “e a terra era sem forma e vazia, com um vento forte (ou o Espírito de Deus) retendo as águas abissais”. O ato criador de Deus nos convoca a uma reflexão prenhe de paradoxos, de antinomias, de contradições. Como o ato de criar pode ser descrito como um ato violento? Deus faz violência contra si mesmo? Violência e Deus não são realidades incompatíveis entre si? Não será violência teológica ler os primeiros versos da Bíblia como expressão de uma divina violência contra si mesmo? Talvez a única resposta correta seja “Sim!”. Mas talvez seja este o único caminho viável para começarmos a compreender a violência que domina o mundo contemporâneo – o caminho do paradoxo impensável de unir em uma mesma sentença Deus e violência.
Violência que se desdobra contra o outro caoticamente violento, ordenando-o violentamente, estabelecendo-lhe com autoridade suprema um ritmo, uma forte harmonia, agudas diferenciações (luz e trevas, terra e mar, etc.), parcerias não-democraticamente estabelecidas (águas e terra têm de participar da criação gerando seres viventes, animais recebendo a bênção de reproduzir a vida e encher a terra, bênção para o ser humano) em que Adam (macho e fêmea), como representantes do Criador, enchendo a terra, dominará (sic) o não-adam – profusão de violências tal que os atos criadores desse novo mundo não-mais-caótico, pleno de ritmo e harmonia, culminam em um descanso, uma cess-ação da violência criadora.
Violência que se aprofunda no segundo relato da criação quando, após o adam-macho descobrir sua solidão, Deus, sem o consentimento informado do paciente, o anestesia e opera, retirando-lhe parte do corpo para destruir a sua solidão: um novo ser-corpo “à sua altura”, uma adam-fêmea, para viver-lhe “lado-a-lado”, inaugurando uma relação violenta chamada amor - que fere lancinantemente, posto que é “mais forte do que a morte” (Ct 8,6). Fim da solidão de adam-macho, mas cenário para o ato violentamente anti-ético da Queda(?) e suas não menos violentas conseqüências – mentira, dolo, culpabilização do outro, emudecimento da serpente (aliás, o que aconteceu com a serpente falante do jardim edênico?), suor, parto, dominação, exílio.
Estranha violência essa à qual atribuímos Deus como sujeito – uma violência que gera vida pluriforme, que cria alteridade, que possibilita criatividade, inter-subjetividade, que estabelece como parceiros o Criador e a criatura, que cria amor, inteligência, responsabilidade, que faz de adam (macho e fêmea) corresponsável pelo cultivo e guarda do Jardim e logo após faça de adam-casal exilados do Jardim do Éden – violento paraíso sem-violência – e que encarrega querubins e uma espada flamejante para proteger/impedir o expulso casal-adam de voltar ...

domingo, 11 de abril de 2010

Teologia em trânsito

Ontem fiquei o dia todo em sala de aula, estudando pós-modernidade e religião com um grupo de lato sensu. Daí não postei nada, deixei para hoje, com as idéias mais soltas. Acordei me lembrando do trânsito. Vou de ônibus diariamente à faculdade, são quarenta minutos de passeio, dentre os quais 3 minutos atravessando a terceira ponte, com uma vista magnífica do oceano atlântico. Gosto de fazer teologia em trânsito. Leio e fico pensando em elucubrações teológicas. Ao mesmo tempo, observo o jeito do trânsito. E isso me faz pensar em teologia e vida.
Se há uma boa razão para crermos em Deus é que Ele é o criador e sustentador da vida. E como ele nos fez à sua imagem, deveríamos também apreciar a vida e sustentá-la. Mas não é isso o que ocorre no trânsito. Barbeiragens, brincadeiras, celulares, dvds, desrespeito às regras básicas.
Lei não é boa, não salva, não serve para tornar a gente feliz. Mas há certas leis que nos ajudam - as do trânsito estão entre elas. Regras básicas para a convivência no espaço público ser saudável e não ameaçar a vida de ninguém. No entanto, dados estatísticos indicam que no Brasil morrem cerca de 50.000 pessoas e 350.000 ficam feridas anualmente no trânsito - e ele é a primeira causa da morte de jovens do sexo masculino.
Fiquei pensando em quantos sermões ouvi sobre trânsito. Nenhum, em quase quarenta anos de igreja. Pensei em quantos preguei. Nenhum, em vários pastorados!
É mais do que hora de retificarmos essa negligência. Por amor ao deus da vida, e por amor a quem deus ama, façamos do trânsito um tema da teologia e da prédica.

Teologia, em trânsito!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Ser espiritual - comprometimento

Para concluir um sermãozinho de três pontos, a espiritualidade se caracteriza pelo comprometimento da pessoa com o projeto de Deus. Comprometimento, ou compromisso, é uma promessa coletiva, feita em comunhão, em comunidade. A espiritualidade cristã não é uma questão de obrigação, mas de co-promessa. Prometemos com Deus que seremos semelhantes a Ele, asism como Ele prometeu que seria semelhante a nós ("em tudo, exceto no pecado" diz o autor de Hebreus), o que fez, habitando entre nós na pessoa do Messias Jesus, e em nós, na pessoa do Espírito Santo.
Comprometimento só funciona quando há fidelidade, pois não há obrigações legais, comandos hierárquicos ou recompensas e castigos que possam fazer valer uma promessa. Na promessa, o que vale é o caráter da pessoa que promete. É o valor interno que dá valor externo à promessa. Ao contrário, no caso da obrigação é o comando externo que dá valor ao que se deve fazer - não entra em jogo, então, o caráter da pessoa. Pessoas infiéis cumprem suas obrigações por que sabem que precisam da reciprocidade e da recompensa que o cumprimento de obrigações possibilita na vida social. Pessoas infiéis, porém, não cumprem promessas, posto que estas não lhes darão qualquer recompensa (um interessante filme, "O Mentiroso", protagonizado por Jim Carey, mostra um exemplo do que estou falando a respeito de caráter e cumprimento de promessas).
Ser espiritual é ser comprometido, independentemente do "retorno" que possamos obter. Não somos espirituais para sermos salvos, abençoados, ungidos, etc. É porque já fomos libertados, santificados, perdoados, abençoados, que nos comprometemos com o projeto de Deus de salvar toda a Criação, mediante a parceria com o Deus salvador. Na linguagem mais tradicional da devoção, ser espiritual é ser grato, pois nascemos da graça de Deus. Graça-gratidão. Espírito-espiritualidade. Precisa mais?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Ser espiritual - discernimento

Outro eixo da espiritualidade cristã é o do discernimento. A pessoa desprendida, espiritual, segundo Paulo "discerne todas as coisas e não é discernida por ninguém" (I Co 2,15). No contexto da carta, Paulo está se referindo ao fato de que as pessoas que não conhecem a Cristo não conseguem enxergar a vida com os olhos messiânicos, apenas com os olhos carnais, sem a intermediação do Espírito Santo.
Discernir é a capacidade de entender criticamente a realidade. A pessoa espiritual desenvolve uma compreensão crítica da vida que é derivada da sua comunhão com o Messias Jesus. A gente aprende a ver a vida com os olhos de Jesus - ou seja, com olhos de compaixão, esperança, justiça, fidelidade.
Ser espiritual é viver o discernimento e, conseqüentemente, fazer teologia é um ato de espiritualidade. Discernimento leva a bons conceitos, boas idéias, bons textos e, principalmente, a boas obras.
Por isso, ser espiritual, hoje em dia, mais do que nunca, é andar na contramão, e nadar contra a corrente. Na sociedade de informação, quanto menos discernimento melhor. Mais a pessoa fica escravizada ao consumo e aos padrões consumistas de vida. Assim, só pessoa desprendida consegue discernir e só quem discerne consegue viver desprendidamente.
Círculo virtuoso!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Teologia Narrativa - começando a conversa

O Isaías deixou um comentário sobre teologia narrativa, tema de seu interesse. Nesse comentário cita Frei e Hauerwas, que afirma o caráter narrativo do jeito do ser humano pontuar a sua vida no mundo. Até aí, tudo bem. De fato, para dar sentido à vida pessoal e social, a maioria de nós constrói (conscientemente ou não) narrativas, mediante as quais damos ordem ao caos que é a vida. A partir dessa noção, tem se falado muito e praticado também terapias narrativas, pedagogias narrativas em situações multiculturais e lutas por reconhecimento mediante a narrativa de identidades.
O pouco que tenho lido sobre teologia narrativa me faz, porém, levantar uma questão. Não é porque narrativizamos a identidade que a teologia precisa ser apresentada em um gênero textual narrativo. A crítica que teólogos narrativos fazem à teologia conceitual é, na maior parte das vezes, legítima. Muita teologia acadêmica e eclesiástica se reduziu a mero sistema conceitual, apologético, frio, sem vida. Isso não quer dizer, porém, que o gênero textual acadêmico-contextual só consiga produzir relatos sem-vida.
Em semiótica o termo narrativa tem dois sentidos distintos. O primeiro, já mencionado, é o do gênero textual narrativo - com suas várias formas: conto, novela, relato, crônica, romance, história, etc. O segundo, mais profundo e mais interessante do que o primeiro, afirma que narrativa é uma estrutura básica do pensar e produzir sentido que gira ao redor de uma transformação. Um estado inicial é modificado para chegar a um estado final. O estado a que a semiótica se refere é o de junção entre um sujeito e um objeto-valor. A junção se desdobra em conjunção e disjunção. A narrativa é a passagem de uma conjunção para uma disjunção e vice-versa.
Esse modelito simples da narratividade tenta dar conta de uma realidade complexa. Para darmos sentido à vida, buscamos a junção com certos valores (objeto-valor). Ou seja, tentamos a conjunção com aquilo que desejamos e a disjunção em relação ao que desprezamos. Nesse sentido, todo e qualquer gênero textual se baseia em uma narratividade prévia.
Se formos por aí, uma teologia narrativa não precisa ser apenas teologia em gêneros textuais narrativos. Pode ser também teologia em gêneros não-narrativos que gire ao redor da narratividade, ou seja, das transformações que dão dinâmica e sentido à vida humana e à relação de deus com a sua criação.
Agora, a bola volta para o Isaías, e para quem quiser arremessar ...

Ser espiritual - continuação

A espiritualidade cristã tem tudo a ver com desprendimento. É seu ponto de partida e, talvez, também o de chegada: "para a liberdade o Messias nos libertou". Quem é desprendido não ama o mundo nem o que nele há (I João 2,15-17) - em termos bem contemporâneos - não ama o sistema capitalista e seu deus Mamom, chamado de Mercado; não ama o sistema político e seu deus Poder, chamado de Democracia; não ama o sistema tecnológico e seu deus Conhecimento, chamado de Ciência; não ama o sistema midiático e seu deus-ídolo Prestígio, chamado de Audiência. Quem é desprendido não ama a sim mesmo além do que merece amar, apenas ama a si mesmo com o mesmo amor com que ama o próximo, mas com menor amor do que o amor com que ama a Deus, pois só amando a Deus acima de todo amor próprio é que se consegue viver desprendidamente.
A espiritualidade cristã tem, então, tudo a ver com o corpo, a matéria, o aqui-agora. A materialidade do mundo e da gente é tão espiritual que dela não nos conseguimos desprender e dela fabricamos ídolos. Século XXI d.C., sim, mas continuamos tão primitivos quanto as hordas selvagens e totêmicas que cientistas modernos da psiquë consideravam sub-humanos, ops, sub-desenvolvidos. A materialidade mundana é tão espiritual que a teologia mais popular é a do deus-dinheiro-prosperidade.
Não, o problema não é a materialidade. O problema são os nossos valores. A matéria é espiritual, sim, pois se origina do sopro divino, tão espiritual que até se diz dele que é imaterial - que baita contra-senso. O problema não é o materialismo, mas a espiritualização do materialismo. O problema é que nossas idéias, fora do lugar, não sabem colocar a matéria no seu devido lugar.
Ser espiritual é ser corpóreo, frágil, mortal. De novo: Vento-Nada.

terça-feira, 6 de abril de 2010

A culpa é dos amigos "da onça"

Amigo é coisa pra se guardar - dizia a canção. Mas guardar bem escondido. Alguns estão me atormentando, dizendo que coloquei uma foto de trinta anos atrás, só pra não parecer velho. Outros juram de pés juntos que não sou avô. Só pra parar com a falação, seus amigos da onça, troquei de foto. Esta é de novembro do ano passado. No shopping em Vila Velha, levando meu neto para conhecer o templo da sociedade de consumo. Em tempo: o Adrian já é freqüentador assíduo da livraria, o único lugar do shopping onde ele se sente em casa.
Que é que isto tem a ver com teologia? Sei lá, mas deve ser algo ligado com essa coisa que a gente chama vida. Ela vai acabando para uns, começando para outros. Entre o acabar e o começar, a gente vai teologando.

Ser "espiritual" - Desprendimento

O tema da espiritualidade sempre me desafiou. Não passam muitos meses e eu volto a ensinar, escrever ou debater sobre a aventura da fé. certo que teólogo não é a pessoa certa para escrever sobre este assunto. Ninguém acredita na espiritualidade de teólogos. Isso, no final das contas, é muito bom, pois nada mais complicado do que ser guru. Mais cedo do que se pensa, os conselhos do guru dão errado...
Mas, enfim, eu vivo tentando ser uma pessoa espiritual. Para mim, ser espiritual é, antes de qualquer outra coisa, ser desprendido. No Houaiss e no Michaelis, desprendida é a pessoa que foi desamarrada, foi solta, tornou-se independente - o que me conduz a Gálatas capítulo 5: para a liberdade o Messias Jesus nos libertou. Ser desprendido é, também, ser indiferente - em meu caso, indiferente aos bens materiais, roupas de grife, carro da moda, etc. Isso de vez em quando me arruma encrencas domésticas, pois depois de três décadas de trabalho, meu patrimônio é quase "zero". Mas isto me lembra de I João, "usar os bens deste mundo sem se escravizar a eles". Ser espiritual é ser desprendido, pois só assim a gente consegue viver para o outro. Como dizia Levinas, "além do egoísmo e do altruísmo está a religiosidade do self". No dicionário também se diz que desprendido é "exalado". Gostei dessa definição. Primeiro, por que ela me lembra de uma velha canção "dinheiro na mão é vendaval" - gosto de gastar, pouco mas bem, para viver feliz e não destruir ninguém. Segundo, porque nós, cristãs e cristãos, somos sopros, hálitos de Deus. E aí voltei para o hebraico e o grego em que "espírito" é vento. Ser espiritual é ser brisa suave, vento forte, ventania, tornado, furacão: mas Ser espiritual, só Deus. Nós somos (eu com certeza sou): Vento-Abel. Vento-Névoa. Vento-Nada.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Religiões, Filosofias e Ciências

A relação entre religião e ciência, assim como entre teologia e ciência, possui uma longa história. Nos tempos medievais, não havia distinção disciplinar ou epistêmica entre os diversos campos do saber humano, todos subsumidos na Universidade auspiciada pela Igreja Católica. Com o advento da Modernidade, a divisão epistêmica e disciplinar começa a surgir e, com ela, a necessidade de colocar em relação dois tipos de saber que, outrora, não se distinguiam claramente. Em um primeiro momento, como busca de libertação do controle eclesiástico, e apoiada pela crítica protestante (segundo a leitura de Foucault), a filosofia se separa da religião e se coloca em confronto com a mesma, posto que se considera porta-voz da verdade e da razão (uma coisa só, então). Posteriormente, as ciências específicas vão se tornando autônomas e também precisam definir sua relação com a filosofia e com a religião. Em relação à religião, se toma distância crítica, a partir da afirmação de que somente o método científico conduz à verdade, deixando à religião o campo do mito, da ilusão, da falsidade ou da ideologia, dependendo dos autores em questão.
Hoje em dia o quadro não é muito diferente. Onde se pensa que há um só caminho para a verdade, a relação é conflituosa. Fundamentalistas, na filosofia, nas ciências, ou na religião, vivem se degladiando em busca da auto-afirmação exclusiva de posse e guarda da verdade. Onde cientistas, filósofos e religiosos se entendem como pessoas incompletas, com conhecimentos incompletos, buscando Verdade que sabem jamais será encontrada em plenitude, a relação é amistosa. Entre os dois extremos, da negação e da aproximação, há o "em cima do muro" da indiferença.
O terreno de encontro tenso entre esses três tipos de saber se dá nas discussões bioéticas, posto que estas não só têm a ver com a definição do que é ser humano, como também têm a ver com a normatização do que se fazer com o humano - aborto, alimentação transgênica, pesquisa com células-tronco embrionárias, alteração dos limites biológicos mediante a tecnologia, etc.
Já passou o tempo em que se podia falar de religião e ciência como "magistérios não-interferentes" (NOMA, non-overlapping magisteria). Religiões, filosofias e ciências se entecruzam constantemente na definição do que é ser humano, do que é viver bem, do que é viver justamente em coletividade.
A questão é: irá vencer o bom-senso e prevalecer o diálogo, ou os fundamentalistas em cada time serão os manda-chuvas?

domingo, 4 de abril de 2010

Intolerância "evangélica"

Hoje não é dia para falar sobre intolerância. Domingo de Páscoa, dia de celebração da vitória da vida sobre a morte, da justiça sobre o pecado, da inclusão sobre a exclusão, da aceitação sobre a intolerância, da reconciliação! Entretanto, a imprensa noticia um episódio que, se fosse algo isolado, não mereceria qualquer comentário - jogadores de futebol "evangélicos" se recusam a distribuir ovos de páscoa em um lar espírita.
Não tenho nada a ver com a crença das pessoas envolvidas no episódio, nem quero julgá-las. O que me chamou a atenção foi o fato de que a atitude de intolerância "evangélica" não é algo isolado. Faz parte da pregação de várias igrejas e seus pastores e pastoras e tem gerado inclusive violência física, além da simbólica. Menos mal que movimentos em defesa da liberdade e da tolerância religiosa têm surgido em resposta a tais atos bárbaros.
Grafo "evangélico" entre aspas, por que cada vez mais esse termo perde o seu sentido. Ser "evangélico" hoje em dia no Brasil está se tornando sinônimo de pseudo-cristão, de gente que confunde dogmatismo com fé, egocentrismo com caridade, intolerância com liberdade religiosa.
Péssimo modo de acordar num domingo de Páscoa. Ainda bem que na cruz Deus reconciliou consigo mesmo todas as coisas, nos céus e na terra. Deixemos, pois, que o amor reconciliador de Deus faça a nossa cabeça, determine a nossa identidade.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Novo blog no ar!

Conforme comentei antes, Leonel, paulo e eu estamos começando um blog de leitura bíblica em três diferentes perspectivas, aberto à palpitação de leitoras e leitores.
O endereço é: http://bibliasobtresolhares.blogspot.com/. Apareçam e façam propaganda...
Abs pascais

Prá não dizer que não falei da Páscoa ...

Depois de amanhã celebra-se a Páscoa. Domingo da ressurreição. O que nos lembra - hoje celebra-se a paixão do Messias Jesus. Morte e ressurreição, cujos significados são tantos e tão intensos que até fica difícil falar de novo sobre os mesmos. Mas vamos lá, sem nenhuma pretensão de dar um novo e verdadeiro sentido ...
Morte e ressurreição de Cristo são também a morte de um "mundo" - ou seja, de um jeito de organizar a vida humana em sociedade (tanto no âmbito simbólico da cultura ou mundo-da-vida, quanto no concreto da economia, política, tecnologia e mídia), de dar sentido a essa vida e de fazer com que as pessoas adotem, comprem e sigam esse estilo de vida. O que faz a gente se maravilhar nestes dias é que as mesmas instituições que celebram a Páscoa são promotoras do jeito velho e defunto do "mundo" - consumismo, individualismo, hedonismo ... Não é à toa que são as empresas capitalistas as que mais se aproveitam deste feriado para vender, vender (ontem passei numa grande loja e haja fila ...). Como se costumava dizer: o capitalismo é o sistema idolátrico da morte, mas se apresenta como se fosse o sistema fiel da ressurreição.
A ressurreição do "mundo" morto carrega uma anomalia - não é a volta à vida. Aliás, quanta gente confunde ressurreição com "volta". Ressurreição não é voltar, é ir além, é transcender, é transformar. É utopia (palavra desgastada, mas que merece ressuscitar...)! Por isso, me espanto quando vejo que "crentes" não mais conseguem sonhar, imaginar um mundo diferente, uma outra forma de viver a vida no planetinha terra. Talvez seja culpa de nosso velho hábito de pensar a ressurreição como algo "fora deste mundo", "depois deste tempo". Ressurreição sim, aqui e agora, nova criação já iniciada. Nossas escatologias precisam de um banho de utopia, ou se tornarão meras falações sobre o "escatós" (não o temporal, mas o da privada...).
Feliz Páscoa!

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Novos Links

Adicionei dois links em blogs interessantes. Um deles é o blog do Ricardo, abuense, missionário atualmente no Uruguai, o país dito mais secularizado da AL. Conheci Ricardo em encontros de ABU e nos tempos da FTSA, só não vou dizer o apelido dele para não perder o amigo. O segundo é o de um ex-aluno da FTSA e agora (coitado) colega de profissão (professor de teologia), Jonathan. Vale a pena dar uma olhada.