sábado, 17 de abril de 2010

teologia da Violência - 4. A violência simbólica

O olhar teológico nos permitiu categorizar a violência como busca da infinitude, como esforço para superação da finitude que nos caracteriza como criaturas, esforço para se tornar deus. Nesse sentido, a violência simbólica é a concretização do logos anthrópou alienado do logos theoû, da fala humana ilimitada, indisposta a entrar em diálogo com a fala divina que convida a criatura humana a falar-em-Seu-nome, indisposta a entrar em comunicação com o próximo humano na construção de uma vida sócio-cultural não-violenta. Violência que também pode ser descrita na linguagem crua de Tg 3,8: “mas a língua, nenhum homem a pode domar. É um mal irrefreável; está cheia de peçonha mortal”.
Usando terminologia metafórica, Pierre Bourdieu, um dos principais analistas da violência simbólica, fala da mesma como uma alquimia, derivada da hipocrisia estrutural instalada nas relações sociais, mediante a qual a sociedade honra “aqueles que a honram aparentando recusar a lei do interesse egoísta. O que se exige não é que façamos inteiramente o que é necessário, mas sim que, pelo menos, mostremos sinais de que nos esforçamos por fazê-lo” (BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Campinas: Contexto, 1990, p. 171). Mediante a violência simbólica, a violência sistêmica é legitimada e a violência dos detentores dos poderes sistêmicos é justificada e exorcizada, transformada em legalidade e estado de direito. Podemos comparar essa hipocrisia social com a hipocrisia religiosa denunciada no final do Sermão do Monte: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt 7,21-23ss).
Para Bourdieu, o “exemplo mais interessante dessa espécie de alquimia simbólica seria a transfiguração das relações de dominação e de exploração” (idem, p. 173). Na economia das trocas simbólicas, se pressupõe uma confluência de conhecimentos e reconhecimentos, de modo que “para que uma troca simbólica funcione, é preciso que ambas as partes tenham categorias de percepção e avaliação idênticas. Isso vale também para os atos de dominação simbólica que ... são exercidos com a cumplicidade objetiva dos dominados, na medida em que, para que tal forma de dominação se instaure, é preciso que o dominado aplique aos atos do dominante (e a todo seu ser) estruturas de percepção que sejam as mesmas que as que o dominante utiliza para produzir tais atos” (idem, p. 174).
Dessa maneira, a violência simbólica se apóia num reconhecimento que é, de fato, desconhecimento, dos fundamentos a partir da qual ela é exercida. Exemplos de violência simbólica (no tipo da dominação) em nossas sociedades ocidentais são: a dominação masculina, o paternalismo, a relação entre irmãos mais velhos e mais moços, o racismo, etc. “Para que a alquimia funcione, como na troca de dádivas, é preciso que seja sustentada por toda a estrutura social, logo, pelas estruturas mentais e disposições produzidas por essa estrutura social; é preciso que haja um mercado para as ações simbólicas conformes, que haja recompensas, lucros simbólicos, com freqüência conversíveis em lucros materiais, que se possa ter interesse pelo desinteresse” (idem, p. 175) – em termos neotestamentários, é necessário um mundo cegado por um falso deus (II Co 4,4).
“Um dos efeitos da violência simbólica é a transfiguração das relações de dominação e de submissão em relações afetivas, a transformação do poder em carisma ou em encanto adequado a suscitar um encantamento afetivo. O reconhecimento da dívida torna-se reconhecimento, sentimento duradouro em relação ao autor do ato generoso, que pode chegar à afeição, ao amor, como vemos com particular clareza nas relações entre gerações. A alquimia simbólica, tal como acabo de descrevê-la, produz, em proveito daquele que cumpre com esses atos de eufemismo, de transfiguração, de conformação, um capital de reconhecimento que lhe permite ter efeitos simbólicos. É o que chamo de capital simbólico, atribuindo assim um sentido rigoroso ao que Max Weber designava pela palavra carisma” (idem, p. 176).
Se olharmos para a formação sócio-cultural brasileira, veremos que esse tipo de dominação transfigurada emotivamente constitui o modo predominante do exercício do poder em nossa sociedade até o presente. Na sociedade brasileira o poder é exercido de forma autoritária em todas as suas instâncias, desde a relação familiar até a relação Estado-cidadão – entretanto esse autoritarismo é simbolicamente transfigurado na relação paterno-familiar, de modo que as pessoas dominadas não reconheçam a dominação nas relações. E mesmo no ambiente eclesiástico esse tipo de relação de poder é predominante, ao ponto que somente pastores(as) carismáticos (no sentido weberiano) são reconhecidos como verdadeiros líderes, como pessoas “com unção”.
A violência simbólica é fruto da estruturação social e lingüística no decorrer da história, de modo que os sujeitos sociais não a percebam como construção humana, mas a vejam como natural, algo que não pode ser evitado. “Para que o ato simbólico tenha, sem gasto visível de energia, essa espécie de eficácia mágica, é preciso que um trabalho anterior, freqüentemente invisível e, em todo caso, esquecido, recalcado, tenha produzido, naqueles submetidos ao ato de imposição, de injunção, as disposições necessárias para que eles tenham a sensação de ter de obedecer sem sequer se colocar a questão da obediência. A violência simbólica é essa violência que extorque submissões que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em ‘expectativas coletivas’, em crenças socialmente inculcadas. [...] A crença de que falo não é uma crença explícita, colocada explicitamente como tal em relação à possibilidade de uma não-crença, mas uma adesão imediata, uma submissão dóxica às injunções do mundo, obtida quando as estruturas mentais daquele a quem se dirige a injunção estão de acordo com as estruturas envolvidas a injunção que lhe é dirigida” (idem, p. 177).
Em síntese, a violência simbólica é a estrutura-estruturante da fala humana em sociedade e na história, mediante a qual a violência sistêmica é legitimada e naturalizada e a violência subjetiva é racionalizada como falha individual, patologia de grupos sociais marginalizados, atrasados, culturalmente inferiores e, assim, politicamente incapazes de conviver de forma não predominantemente violenta. Uma das conseqüências perversas da violência simbólica é a qualificação do senso crítico como rebeldia ou como teoria inútil, vendendo a velha e falsa dicotomia teoria-prática em uma nova linguagem - o que dá certo versus o que não dá certo.

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