A primeira tentação que devemos superar em um estudo bíblico sobre a violência é a de excluir Deus do âmbito da violência. Péssima estratégia, posto que o Deus testemunhado no Antigo Testamento destruiu a humanidade em um dilúvio, libertou os hebreus do Egito pela força de seu poder, culminando na mortandade dos primogênitos egípcios, ordenou a seu povo que exterminasse cananeus, é chamado de Senhor dos Exércitos que guerreia as guerras dos reinos de Judá e Israel. Igualmente péssima é focalizar a violência da divindade nesses episódios e desconstruí-los mediante uma releitura neotestamentária, ou retirar sua força descomunal mediante conceitos tais como o da revelação progressiva, ou o da acomodação divina. Se quisermos entender a relação entre Deus e a violência na Escritura precisaremos dirigir nossa atenção a textos aparentemente irrelevantes ao tema.
Podemos começar no princípio. Inusitadamente óbvia esta escolha. O relato poético da criação em Gn 1,1-2,4ª é excelente ponto de partida para o estudo da violência na Bíblia. O amoroso ato criador de Deus desvela um ato de violência contra o próprio Deus que cria um outro para Si, outro esse que “no princípio” era pura violência – “e a terra era sem forma e vazia, com um vento forte (ou o Espírito de Deus) retendo as águas abissais”. O ato criador de Deus nos convoca a uma reflexão prenhe de paradoxos, de antinomias, de contradições. Como o ato de criar pode ser descrito como um ato violento? Deus faz violência contra si mesmo? Violência e Deus não são realidades incompatíveis entre si? Não será violência teológica ler os primeiros versos da Bíblia como expressão de uma divina violência contra si mesmo? Talvez a única resposta correta seja “Sim!”. Mas talvez seja este o único caminho viável para começarmos a compreender a violência que domina o mundo contemporâneo – o caminho do paradoxo impensável de unir em uma mesma sentença Deus e violência.
Violência que se desdobra contra o outro caoticamente violento, ordenando-o violentamente, estabelecendo-lhe com autoridade suprema um ritmo, uma forte harmonia, agudas diferenciações (luz e trevas, terra e mar, etc.), parcerias não-democraticamente estabelecidas (águas e terra têm de participar da criação gerando seres viventes, animais recebendo a bênção de reproduzir a vida e encher a terra, bênção para o ser humano) em que Adam (macho e fêmea), como representantes do Criador, enchendo a terra, dominará (sic) o não-adam – profusão de violências tal que os atos criadores desse novo mundo não-mais-caótico, pleno de ritmo e harmonia, culminam em um descanso, uma cess-ação da violência criadora.
Violência que se aprofunda no segundo relato da criação quando, após o adam-macho descobrir sua solidão, Deus, sem o consentimento informado do paciente, o anestesia e opera, retirando-lhe parte do corpo para destruir a sua solidão: um novo ser-corpo “à sua altura”, uma adam-fêmea, para viver-lhe “lado-a-lado”, inaugurando uma relação violenta chamada amor - que fere lancinantemente, posto que é “mais forte do que a morte” (Ct 8,6). Fim da solidão de adam-macho, mas cenário para o ato violentamente anti-ético da Queda(?) e suas não menos violentas conseqüências – mentira, dolo, culpabilização do outro, emudecimento da serpente (aliás, o que aconteceu com a serpente falante do jardim edênico?), suor, parto, dominação, exílio.
Estranha violência essa à qual atribuímos Deus como sujeito – uma violência que gera vida pluriforme, que cria alteridade, que possibilita criatividade, inter-subjetividade, que estabelece como parceiros o Criador e a criatura, que cria amor, inteligência, responsabilidade, que faz de adam (macho e fêmea) corresponsável pelo cultivo e guarda do Jardim e logo após faça de adam-casal exilados do Jardim do Éden – violento paraíso sem-violência – e que encarrega querubins e uma espada flamejante para proteger/impedir o expulso casal-adam de voltar ...
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