Violência que se perpetua, posto que o primeiro relato após a expulsão do Éden tematiza o assassinato de Abel (vazio/nada/vento) por seu irmão Caim (ferro/lança): Gn 4,1-16. Segundo o relato textual, Caim fica frustrado e irado porque Deus rejeita sua oferta sacrificial – Caim não consegue “agradar” a Deus (4,5) e não consegue entender porque Deus não se agradou de sua oferta, impedindo-o de consumar seu religioso desejo de satisfazer ao Pai (4,6-7). Oferta rejeitada sem qualquer explicação – violenta recusa de receber a adoração cainita.
A ira de Caim, dirigida contra Deus, é desviada para o frágil Abel, bode expiatório dessa divindade arbitrária e incompreensível - Deus irrazoável, Enunciador de um não, sem razão, ao adorador agradecido. Após matar Abel, interpelado novamente por Deus, Caim tenta se inocentar. Inventa um álibi para tentar encobrir a falta de solidariedade e o amor a seu irmão (4,9) – dando razão (racionalidade) ao ato mortal que recém cometera – embora ocultando a verdadeira razão do assassinato.
Deus julga e condena Caim, e exerce contra ele violência legalmente justificada (retribuição ao clamor do sangue) – sentença, porém, que não obedece ao padrão “olho por olho, dente por dente”, posto que não mata Caim, mas permite que ele continue vivo e seja entregue à sua própria falta de solidariedade (4,10-12). Apavorado, Caim clama, pois teme ser vítima do mesmo tipo de violência que cometeu. Deus ouve o clamor do assassino e o protege da violenta vingança (4,13-16; cp. Pv 20,22), e Caim passa a viver longe da presença de Deus, mas marcado pela ausente presença protetora de Deus: “O Senhor, porém, lhe disse: Portanto quem matar a Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse” (4,15).
O relato da descendência de Caim e do nascimento da civilização urbana (Gn 4,17-24) é marcado pela ambivalência: família e vizinhos são necessários para viver bem (4,17-22), mas também são ameaçadores. A cidade se torna o lugar da violência contra o próximo. A cultura se torna a justificativa da violência contra o próximo – negando-o como próximo e instaurando o círculo vicioso da violência-vingança-violência: “Disse Lameque a suas mulheres: Ada e Zila, ouvi a minha voz; escutai, mulheres de Lameque, as minhas palavras; pois matei um homem por me ferir, e um mancebo por me pisar. Se Caim há de ser vingado sete vezes, com certeza Lameque o será setenta e sete vezes” (4,23s)! Assim como a religião, cultura e civilização são fontes de violência, têm a violência incrustada em seu modo de existir.
O relato do dilúvio (caps. 6-9) tematiza a perpetuação da violência e sua escalada quase infinita. Nos v 1-4 o texto inicia o relato de forma enigmática: filhos de Deus se apaixonam por filhas dos homens e as tomam em casamento – obrigando Deus a emitir uma sentença de morte sobre a humanidade: “Então disse o Senhor: O meu Espírito não permanecerá para sempre no homem, porquanto ele é carne, mas os seus dias serão cento e vinte anos” (v. 3 – cf. a genealogia do cap. 5, com a duração quase milenar da vida antediluviana). Mas. Já não havia Deus estabelecido a sentença de morte quando da expulsão do jardim? Já não haviam morrido as pessoas antediluvianas, ainda que após centenas de anos de vida?
Após a introdução, o texto destaca o olhar de Deus: “Viu o Senhor que era grande a maldade do homem na terra, e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era má continuamente” (v. 5) e “Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra” (v. 12). Entre essas declarações da visão de Deus, reforçando o que fora contemplado, o texto afirma: “A terra, porém, estava corrompida diante de Deus, e cheia de violência” (v. 11). Literariamente, os v. 5-11 formam uma unidade textual cujo tema é a violência, enquanto o v. 12 inicia uma nova unidade textual, com vocabulário extraído da unidade anterior (o v. 12, note, repete a explicação do v. 11).
Deus, arrependido de ter criado o ser humano, decide destruí-lo de sobre a face da terra, juntamente com tudo o mais que existia, mediante um dilúvio. Entretanto, faz aliança com uma família e lhe ordena que construísse uma arca para se salvar e salvar a população animal. Ao final do relato do dilúvio, Deus avalia sua própria sentença judicial: “Sentiu o Senhor o suave cheiro e disse em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como acabo de fazer. Enquanto a terra durar, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite” (8,21-22). A maldade do homem, reconsidera Deus, não pode ser paga por toda a criação e, como o ser humano é o representante de Deus para administrar a criação, por amor à criação Deus decide suspender a sentença de morte.
Escandalosamente, o relato do Dilúvio introduz a ambivalência no próprio Deus – arrepende-se, pune, mitiga a punição mediante aliança, arrepende-se de ter punido, promete não mais punir com morte. Ambivalência que é resposta à ambivalência do humano, cuja inteligência é má desde a meninice – violência instalada no âmago do ser humano: o desejo e o pensamento do seu coração. O próprio relato da nova aliança de Deus com Noé e seus descendentes, em benefício de toda a terra, é eivado de violência (a maldição se instala na própria família de Noé) e marcado pela advertência divina de que todo assassinato será objeto da retribuição penal.
Nestes capítulos 4-9 de Gênesis, a violência é apresentada como fruto da incapacidade humana de lidar com sua finitude diante de Deus (criaturidade e morte) e de sua responsabilidade perante o próximo (amor e solidariedade), incapacidade inscrita no coração do ser humano, cujos pensamentos e desejos são permanentemente maus e corruptos - violentos. A ambivalência, assim, define o tom da religião, civilização e cultura: são, simultaneamente, busca de vida e tempo-espaço da violência. Por isso, o texto que relata o pecado originante o define como “querer ser igual a Deus”, o que permitiria ao ser humano a infinitude e não-ambivalência. Engano terrível, porém, pois o infinito Deus violenta a Si mesmo para superar a própria infinitude e não-ambivalência na criação do outro.
Diante de sua finitude e responsabilidade, o ser humano se torna violento e oculta sua violência mediante a religião, a civilização e a cultura. A violência está instalada em mim, em você, na sociedade, na cultura – enfim, em todas as realizações humanas, percepção que, embora fundada em outras fontes, é defendida por vários estudiosos da vida humana em sociedade, e nomeia as diferentes dimensões da violência = estrutural e sistêmica (embutida nos arranjos econômicos e políticos), simbólica (embutida nos arranjos linguageiros, culturais e científicos) – daí, violência objetiva – e violência subjetiva (a praticada por sujeitos específicos). Ou, como afirmara o filósofo crítico: “todo monumento de cultura é também monumento de barbárie” (W. Benjamin).
Talvez um filósofo judeu-europeu possa nos ajudar a sintetizar este drama teológico da violência: “Levinas nos convida a considerar um relato não-sentimental e desestabilizador da intriga e do drama da responsabilidade e testemunho que ele provoca. Em sua forma mais transtornadora, a violência não se dirige apenas contra a face do outro, contra uma face que é humana; ela também, como enfatiza Jean-Luc Nancy, ‘se origina de uma face sobre a qual a iniqüidade pode, ocasionalmente, ser lida como a devastação dessa mesma face’. Mesmo além desta distinção entre bem e mal, outra violência – a violência de um outro outro – espreita”. (VRIES, Hent de. Religion and violence: philosophical perspectives from Kant to Derrida. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2002, p. 133.)
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