[Com este post termino a série sobre violência. Esta série é de textos mais técnicos, mais exigentes, e talvez não muito comuns em blogs. Mas acredito na inteligência de quem lê e, afinal de contas, se me deu trabalho para escrever, por que não dar trabalho para ler?]
O ser humano é um ser psicossocial, que define sua identidade a partir dos relacionamentos interpessoais. Essa característica da intersubjetividade está inscrita em cada indivíduo, em cada pessoa. Em linguagem filosófica, a pessoa humana vive na tensão entre ipseidade (viver para si mesmo/completar-se em si mesmo) e alteridade (viver para o outro/completar-se no outro). Essa finitude (interdependência), “ou insustentável leveza do ser”, estrutura todas as relações humanas e pode, por sua abstração, nos ajudar a descrever a violência, não como uma patologia, mas como uma possibilidade inerente à existência psicossocial humana – em concordância com a descrição teológica previamente elaborada.
O esquema dialeticamente tenso da existência humana como ipseidade-alteridade (si-mesmo/outro) nos permite oferecer uma definição tentativa da violência subjetiva: violência subjetiva é a resolução (dissolução) da tensão entre alteridade e ipseidade na pessoa, seja com a concentração no pólo da ipseidade (ser-para-si-mesmo-apenas; ser-contra-o-outro), seja no pólo da alteridade (ser-para-o-outro-apenas; ser-contra-si-mesmo). Resolução (dissolução) esta que, ao final, faz, no pólo da ipseidade, do si-mesmo um outro para si; e, no da alteridade, o outro um si-mesmo – em síntese, neutraliza a diferença e afirma a mesmidade, impedindo-nos, assim, de concretizar a igualdade universal afirmada eticamente pela descrição filosófico-moral da Modernidade ocidental.
Conseqüentemente, ação violenta é aquela que, dissolvida a tensão da pessoalidade, se concretiza como ação estratégica (ego- ou alter-estratégica). Seguindo Habermas, define-se ação estratégica como aquela que se efetua não mediante a comunic-ação (a comunhão das diferenças), mas mediante a domin-ação (a hierarquização das diferenças). Ação estratégica é ação que faz do outro, ou de si mesmo, instrumento para a consecução de fins. A ação ego-estratégica é aquela mediante a qual uma pessoa instrumentaliza outra(s) com vistas a atingir seus próprios propósitos, desconsiderando os propósitos, interesses e possibilidades das pessoas instrumentalizadas. A ação alter-estratégica, por sua vez, é aquela mediante a qual uma pessoa faz de si mesma instrumento para a consecução dos propósitos de outra(s), desconsiderando os seus próprios propósitos, interesses e possibilidades.
Sistêmica e simbolicamente legitimada, a ação estratégica de cada pessoa não é percebida enquanto tal e o sujeito da violência sempre a justifica e culpabiliza um outro, reproduzindo o comportamento adâmico descrito em Gn 2-3. A violência subjetiva é, assim, internalização corporificada da violência objetiva e a retro-alimenta no círculo vicioso sem fim da violência da criatura finita que recusa sua finitude. A violência criminal, que mais nos assusta hoje em dia, conforme apresentada pela mídia como a irracionalidade dos marginais diante de uma sociedade legalmente estabelecida, não passa de uma das formas de violência e não pode ser entendida como a pior ou como a forma única da violência subjetiva. (É claro que a questão do crime é bastante complexa e também não posso, aqui, oferecer uma discussão adequada do mesmo. Entretanto, sugiro a re-leitura de um antigo texto filosófico que pode, talvez, nos ajudar a encontrar melhores maneiras de combatê-lo do que meramente “mais polícia e mais cadeia”. O texto é HONNETH, Axel: A Luta pelo Reconhecimento (Loyola), que relê HEGEL, GEORG F. W. Natural Law, do início do século XIX.)
Espetacular texto. Independentemente da adesão do leitor a alguma corrente religiosa ou não (sou ateu), você delineou com perfeição as principais formas de violência. Deveria publicá-lo em algum periódico. E obrigado pela indicação de Honneth. Farei a leitura dele também!
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