quinta-feira, 15 de abril de 2010

Teologia da violência - 3. Deus mesmo se submete à violência

Os capítulos iniciais e fundantes do Gênesis definem o tom dos relatos posteriores sobre a fé em Deus. Fé marcada pela ambivalência e finitude, a ponto de que os próprios israelitas, outrora vítimas da violência faraônica, construirão uma religião na qual seu Deus é um Deus guerreiro, vingador, marcado pela duplicidade e ambivalência, favorecedor de um reino em detrimento de outros – a teologia das cortes israelita e judaíta. Religião oficial permanentemente contestada por profetas (desde Elias e Eliseu em Israel, até os profetas escritores de Judá), denominada como idolatria e injustiça, ruptura da aliança com o Deus que libertara os hebreus do Egito (libertação marcada, ela também, pela ambigüidade da violência contra os egípcios).
Essa longa e estranha história da violência divina só pode ser entendida a partir de seu desfecho: a morte do Filho de Deus enquanto sentença de morte contra a morte, juízo final sobre toda religião que imputa a Deus violência e justifica sua própria violência pela violência divina. Não podemos deixar de notar, entretanto, o quanto o evento-salvífico de Deus em Cristo é, ele mesmo, prenhe de violência, em que Deus mesmo é autor-vítima: (a) a violenta auto-negação do Filho na encarnação, um esvaziamento de sua condição divina para a condição humana de escravidão; (b) a violenta carreira terrestre do filho Jesus, em sua crítica radical à religião oficial de seu povo, climaxizando na violenta purificação do Templo e na violenta lição sobre o discernimento dos tempos (maldição da figueira); (c) o violento fim do Filho mediante a morte de cruz, passando pelo violento processo e ordálio, desembocando na livre aceitação, pelo Filho, da morte determinada pelo Pai.
Morte que é, paradoxalmente, desfecho de uma história da solidariedade de Deus com a vítima, história da infinita e inambígua fidelidade de Deus para com sua criação - do Deus que penetra na economia da violência para lhe tirar o sentido e a força e revelar sua face cruel e assustadora. Morte cujo sentido é multi-dimensional, como expressão da multi-dimensionalidade da superação divina da violência.
(1) Morte da violência sistêmico-simbólica, subjetivo-objetiva. A segunda parte do hino cristológico em Colossenses (v. 18-20) sintetiza a multidimensionalidade da vitória de Cristo sobre a violência. Ele é o primogênito dentre os mortos – por um lado, Jesus é o que vence a morte, pois é o primeiro a ressurgir para nunca mais morrer; por outro, Jesus assume a primogenitura temporal da morte, concretizando, historicamente, sua condição de primeira vítima da violência, visto que é o cordeiro de Deus eleito e crucificado antes da fundação dos séculos (1Pe 1,19-20; Ef 1,3ss). A novidade da interpretação cristológico-messiânica da criação-libertação é a imputação da violência contra o próprio Deus para antes da criação, indicando a vitória de Deus sobre a violência ainda antes dela existir – paradoxal afirmação da violência divina auto-infligida que elimina o poder da violência criatural. O ato subjetivo anterior ao tempo da violência divina rompe a circularidade infinita das dimensões subjetiva e objetiva da violência humana no tempo.
Morrendo na cruz pelos inimigos de Deus e, assim, trazendo a paz, Jesus morre a morte que despoja a violência sistêmico-simbólica de seu poder, no despojar dos principados e potestades (cf. Cl 2,15). Sistêmica, na medida em que o Império Romano trazia paz mediante a morte dos inimigos, mediante a conquista do território do outro, mediante a subjugação do outro ao seu poderio militar. Simbólica, na medida em que a pax romana era o logos legitimador da violência sistêmica, naturalizando a diferença sócio-cultural, fazendo do não-romano um ser inferior ao romano, sem paz, ou seja, marcado pela violência e, por isso, não vítima da violência militar romana, mas réu condenado e penalizado pela justitia romana.
(2) Morte da justificada violência legal da solidão cainita, pois Deus sofre conosco a violência, sofre-a como irmão-Abel (Hb 2,9-18), não mais como marca distante. Em Cristo, Deus assume a condição humana de praticante-vítima da violência e não só rompe o poderoso círculo vicioso da violência, como também rompe o poderoso efeito traumático do sobrevivente da vítima mortal da violência que sofre a solidão da perda, assim como derrota o traumático poder da internalização da violência sofrida pela pessoa que sobrevive à violência que lhe fora infligida.
Enquanto a marca protegia Caim da violência de outros, não permitia a Caim superar a culpa e o medo – efeitos internalizados do ato violento que cometera. A solidariedade de Cristo, assumindo integralmente nossa carne ao ponto de morrer, despoja também o poder da violência internalizada: a violência “interna, ou internalizada, refere-se à violência que assaltou a pessoa de fora e, então, tornou-se embebida dentro de seu corpo, mente e alma” (HESS, Cynthia. Sites of violence, sites of grace: Christian nonviolence and the traumatized self. Lanham: Lexington Books, 2009, p. 25). Em sua vida, morte e ressurreição terrenas, Jesus corporifica e exemplifica a práxis não-violenta a que todo ser humano é chamado para destruir o círculo sem fim da violência e, simultaneamente, indica as fontes humanas de força interna para vencer a violência – na companhia de Deus, como parceiro do Deus da vida e paz.
(3) Morte da violência da religião metafísica/infinita
Enfim, como bem percebeu um pensador não-cristão, “a morte de Cristo na cruz certamente significa que devemos, sem reservas, abandonar a noção de Deus como um cuidador transcendente que garante o final feliz de nossos atos, i.e., que garante a teleologia da história. A morte de Cristo na cruz é, em si mesma, a morte desse Deus protetor. É uma repetição do lugar de Jó: recusa qualquer ‘significado mais profundo’ que possa encobrir a realidade brutal das catástrofes históricas” (ZIZEK, Slavoj. Violence. Six Sideways Reflections. Nova Iorque: Picador, 2008, p. 180s).
Após séculos de casamento entre a teologia cristã e a metafísica grega, devemos nos libertar desse último elo da cadeia infinita da violência – a própria fé cristã que, violentamente, se subjuga a um modo de pensar que lhe é contrário e, assim, tornou-se parte do círculo vicioso da violência. O pensamento metafísico (Habermas), ou forte (Vattimo), ou ontoteológico (Heidegger) aprisionou a teologia cristã à cadeia sem fim da violência simbólico-sistêmica. Ao reduzir a teologia cristã a mera ciência e pensamento unificador, o modo ontoteológico de falar de Deus e de vivenciar a fé afastou-se do modo de pensar libertador da Escritura. Ao invés de encontrar na práxis amorosa o caminho para a superação da violência em todas as suas dimensões, buscou-o na prática cognitiva, recusando o diagnóstico paulino: “Pois do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça” (Rm 1,18).
Afastamento que revela a contínua incapacidade humana de lidar com a finitude e a ambivalência, tentando fazer de Deus o bode-expiatório de nossa adesão à violência como pretensa solução de nossa finitude. Afastamento que confirma a nossa incapacidade de aceitar a loucura e o escândalo da cruz (1Co 1,18-31), incapacidade que, mesmo fora do arraial, pode ser percebida na contemplação do Crucificado: “esse homem-Deus se envolve plenamente com o mundo, morre. Nós, seres humanos, ficamos sem nenhum poder superior vigiando sobre nós, ficamos apenas com o terrível peso da liberdade e da responsabilidade pelo destino da criação divina e, assim, pelo do próprio Deus” (Zizek, Idem, p. 184s).

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