terça-feira, 20 de abril de 2010

Teologia da Violência - 5. A violência sistêmica

A violência sistêmica, por sua vez, é a violência instalada no próprio funcionamento da sociedade e que forma, com a simbólica, um círculo vicioso no qual ambas se retro-alimentam e se justificam. Assim como a violência simbólica se faz passar desapercebidamente, “a violência sistêmica é semelhante à notória ‘matéria negra’ da física: a contraparte de uma violência subjetiva por demais visível. Ela pode ser invisível, mas deve ser levada em consideração se queremos dar sentido ao que, de outro modo, parecem ser explosões ‘irracionais’ de violência subjetiva” (ZIZEK, op. cit., p. 1-2.). Desde os primeiros grandes teóricos dos Estados modernos, a presença da violência é exorcizada. A teoria do pacto social, por exemplo, envia a violência para o “estado de natureza” e define a sociedade legitimamente ordenada como uma sociedade em que, mediante o pacto, a violência originária é expulsa. Não é possível, aqui, discutir em amplitude esta questão. Remeto aos importantes livros de Charles Taylor, As fontes do Self, e Jürgen Habermas, Direito e Democracia, para discussões amplas e profundas do assunto. Para uma descrição bem sintética, pode-se ver, por exemplo, COSTA, Jurandir Freire. “Transcendência e Violência”, disponível no site: http://jfreirecosta.sites.uol.com.br.
A teoria sociológica de Jürgen Habermas é de grande utilidade para descrevermos a violência sistêmica e sua relação com a simbólica. Segundo Habermas, a sociedade se compõe de duas estruturas complementares: o mundo-da-vida e o sistema. O mundo-da-vida é a estrutura simbólica da sociedade – a cultura, as idéias, os valores que dão sentido à vida em comum. O sistema é a estrutura material da sociedade – a economia, o Estado, as instituições científico-tecnológicas e as midiáticas, que asseguram a produção, distribuição e reprodução de bens materiais e simbólicos.
Ao analisar as sociedades modernas, Habermas constata que sua característica fundamental é a de que a macro-estruturação sistêmica coloniza o mundo-da-vida; ou seja, as interações pessoais simbólicas são realizadas de acordo com a lógica sistêmica (estratégia, ganho, dominação impessoal), e não com a lógica mundivital (diálogo, cooperação, intersubjetividade). Dessa forma, as relações pessoais são transformadas em relações objetuais, as relações são coisificadas e naturalizadas violentamente.
A violência sistêmica, assim, é a estruturação das relações pessoais a partir dos imperativos impessoais do sistema, a subjugação do sujeito à lógica dos meios sistêmicos: o dinheiro, ou o poder, ou a tecnologia, ou a mídia – que se perpetua mediante a “eficácia” do sistema capitalista democrático (cujas crises endêmicas sempre são reduzidas a episódios superficiais). A violência sistêmica, assim, possibilita e é realimentada pela violência simbólica que transfigura a ineficácia sistêmica em eficácia, a injustiça social em legalidade, a opressão em falta de iniciativa ou de capacidade dos oprimidos/excluídos em aproveitarem as oportunidades que o livre mercado oferece.
Podemos complementar a descrição habermasiana com uma contribuição pós-hegeliana: “A regra fundamental de Hegel é que o excesso ‘objetivo’ – o reinado direto da universalidade abstrata que impõe sua lei mecanicamente e com total desconsideração pelo sujeito aprisionado em sua rede – é sempre suplementado pelo excesso ‘subjetivo’ – o exercício arbitrário, irregular do capricho. Um caso exemplar dessa interdependência é fornecido por Balibar, que distingue dois modos opostos mas complementares de violência excessiva: a violência ‘ultra-objetiva’, ou sistêmica, inerente às condições sociais do capitalismo, que envolve a criação ‘automática’ de indivíduos excluídos e dispensáveis – dos sem-teto aos desempregados – e a violência ‘ultra-subjetiva’ dos novos ‘fundamentalismos’ étnicos e/ou religiosos, em síntese, racistas”.
Conseqüentemente, a violência é endêmica ao sistema capitalista democrático, apesar de todos os esforços acadêmicos e jurídicos em nublar essa característica da articulação social no Ocidente. Os chamados Estados democráticos de direito, embora legalmente legítimos, são estruturalmente violentos, não só nascidos de uma operação violenta de transformação estrutural, mas também promotores de violência policial-militar legalizada e simbolicamente naturalizada. A não-participação política crítica e consciente da cidadania permite que o círculo vicioso da violência simbólico-sistêmica percorra livremente seu curso. Assim sendo, a concretização da democracia e da legalidade dependem da ação comunicativa dos cidadãos, resistindo à dominação sistêmica e enfrentando criticamente a dominação simbólica.

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