domingo, 30 de maio de 2010

"Foi a vontade de Deus!"; "Deus levou para um lugar melhor!"

Tem razão, as sentenças do título pertencem a um velório ou enterro. Nunca me conformei com esse sentimento fatalista. Depois que comecei a estudar teologia fui descobrindo o modo fundamentalista desse sentimento: a onipotência de Deus, entendida de modo tão mecânico que que, de um jeito ou de outro, tudo o que acontece tem nele a sua causa última. Essa idéia tem suas variações, tanto no meio acadêmico, quanto no fundamentalista, quanto nos ambientes eclesiais. A forma mais comum de lider com essa forma mecânica de onipotência divina tem sido a de atribuir a Deus distintos graus de vontade: determinativa, ordenativa, permissiva e semelhantes. Especialmente esta última tem servido de explicação satisfatória para muita gente. Por quê? Porque em certo sentido ela isenta deus de responsabilidade pelo sofrimento humano - ele permitiu - ao mesmo tempo que mantém sua onipotência. Por outro lado, garante uma boa dose de "livre-arbítrio" temperada com culpa para o ser humano. No final, todo mundo ganha - exceto quem sofre, é claro!

Essa visão da divindade é muito mais próxima da do filósofo Aristóteles do que das escrituras judaico-cristãs. É claro que o casamento entre filosofia e teologia, em seus modos metafísicos: tudo se explica a partir de uma única causa, tudo subsiste como uma grande unidade ontológica (de natureza ou essência), tudo se explica a partir de uma única e verdadeira explicação racional-especulativa (não-científica, mas filosófica ou teológica) tem durado por séculos. Heidegger foi um dos filósofos que descreveu criticamente esse casamento e chamou essa família de ontoteologia - literalmente, teologia do ser ou, para brincar com as palavras, ser da teologia; ou teologia filosófica ou, ainda, filosofia teológica. Seja como for, essa visão de Deus tem assombrado as igrejas cristãs até hoje, e pior, tem feito parte das doutrinas oficiais e dos dogmas de várias (se não de todas).

Se queremos encontrar explicações teológicas cristãs para o sofrimento, porém, temos de abandonar essa concepção metafísica e mecânica da divindade. O deus de quem a escritura dá testemunho é radicalmente diferente dessa imagem ontoteológica. Na escritura, deus é tão poderoso quanto fraco, tão racional quanto emotivo, tão fiel quanto imprevisível. A pessoalidade atribuída a deus na escritura, conquanto não possa ser interpretada literalmente, afasta completamente qualquer possibilidade de descrever deus em termos metafísicos, mecânicos ou estáticos. Como pode ser todo-poderoso um deus que morre na cruz? Como pode ser todo-poderoso um deus que chora e sofre com a dor de sua criação? Como pode ser todo-poderoso um deus apaixonado e apaixonante?

A atribuição a deus de qualidades iniciadas com "oni-" (potência, presença, etc.) só gera confusão conceitual ao lado de uma muleta emocional para nós, seres humanos, que não sabemos assumir a nossa finitude. Deus é in-finito, de modo que seria menos complicado, talvez, que falássemos dele como in-potente, in-presente, in-sciente, in-... Fica esquisito, não é? Mas é melhor ser esquisito do que descrever deus de formas antagônicas ao seu agir testemunhado na escritura e experimentado por inúmeras pessoas, em várias culturas, em todos os tempos.

Se eu fosse usar o prefixo oni- para Deus só conseguiria falar dele como oni-amante, oni-misericordioso, oni-fiel, oni-gracioso, oni-amigo. Mas, pensando melhor, também para essas qualificações eu deveria usar o prefixo in. In-misericordioso, in-amante, in-gracioso, in-fiel (sic!). Aí a coisa complica. "In" é um prefixo privativo, a partir do qual só se pode fazer uma teologia negativa. Que tal, então, in-oni-potente, in-oni-sciente, etc.?

Uma última elucubração. E se assumirmos o prefixo "in" como um prefixo de parceria, de localização interna (in-tímo, in-terior, in-terno, etc.)? Ora, então, se uma criança morre antes da hora, deus morre também com ela. Se o Haiti é arrasado por furacões e ondas, deus fica desabrigado também. Se tsunamis arrasam as costas de ilhas e outras terras não-cristãs, deus se afoga junto com elas. Mas se deus não é nosso hiper-super-herói, para que crer nele? Complicado demais, não é?

No final das contas, é melhor amar a deus do que tentar explicá-lo. Ora, se um cônjuge jamais consegue entender seu par ou sua ímpar, por que deveríamos ser capazes de entender e explicar deus?

4 comentários:

  1. se não entendi mal, então posso concluir que Deus não interfere nunca na história? Isso é uma forma de deísmo? qual seria o papel da oração no meio disso tudo?

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  2. Não sei se vc entendeu bem, nem sei se eu escrevi bem ... rs

    (1) Deus age na história, sim, mas ele não "interfere", pois a história é feita por seres humanos, com os quais deus se relaciona ...
    (2) O papel da oração, pelo que penso e pelo que pratico, é o de manter a amizade com deus, de manter a nossa filialdade, de alimentar o amor mútuo ente nós e deus
    (3) Mais do que isso ... talvez outro dia.

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  3. difícil entender essa tensão do agir sem interferir...

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  4. A interferência é um ato externo ao processo sobre o qual alguém interfere. O agir de Deus é interno à história, por isso falo em agir em parceria.

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