Nesta semana a Faculdade Unida está recebendo Milton Schwantes para palestras e aulas na pós-graduação. Para quem não o conhece, Milton é um dos pioneiros da exegese tipicamente latino-americana, junto com Carlos Mesters, José Severino Croatto, Ana Flora Anderson, etc. Em uma das palestras ele tratou de Gn 1-11 sob a perspectiva político-econômica. Em "reação" à sua fala, abordei Gn 1-11 sob a perspectiva das paixões (afetos, emoções). Caso vc não se lembre, Gn 1-11 é um conjunto de textos que fala das origens - criação do mundo (1-2), pecado (3) civilização (4-5), dilúvio (6-9), nações (10) e povos semitas (11).
Há dois pares de paixões que tematicamente perpassam esse bloco de Gn 1-11. Um deles é o par das paixões da dominação, do Império, da injustiça: arrogância e crueldade. A pessoa arrogante é aquela que se considera mais do que realmente é e, simultaneamente, considera os outros como menos do que realmente são. Por isso, ela se arroga ao direito de mandar, dominar, derrotar, conquistar... A arrogância, comumente, é acompanhada pela crueldade, a paixão que pode ser descrita como aquela que leva a pessoa a tratar maldosamente outras, com violência, humilhando, menosprezando, maltratando outras pessoas ou seres não-humanos (a gente vê a crueldade nas criancinhas, por exemplo, nos momentos de prazer que elas têm em destruir coisas...). Quando Gn 6 descreve o pecado humano que estava na base do dilúvio, os termos hebraicos todos giram ao redor da crueldade e arrogância. Quando Gn 9, após o dilúvio, quer mostrar que o ser humano é, enquanto humano, pecador, descreve Noé (o justo "salvador" da humanidade) bêbado, amaldiçoando um de seus filhos - o arrogante pai foi cruel para com seu filho, só porque o rapaz viu o pai pelado. Que Deus aceite conviver e prometa não mais destruir essa humanidade "pecadora" mostra o amor de YHWH, ou o que, no Cristianismo costumamos chamar de graça de Deus.
O outro par de paixões é antagônico ao primeiro. São as paixões que mostram a semelhança entre o ser humano e o Criador, são as paixões da "imagem de Deus", usando um termo do próprio Gn. São as paixões da criatividade e do cuidado. A criatividade é a paixão que nos leva a criar idéias, valores, objetos, relações, etc. É a paixão da não-preguiça, do não-acomodamento, a paixão da auto-transcendência, que está muito ligada ao amor, pois criar também é criar novas vidas na relação amorosa. Criatividade é, também, a paixão da não-arrogância, pois a pessoa criativa normalmente sabe que não é completa, perfeita, que ainda precisa se auto-transcender, de modo que não consegue pensar de si como mais do que realmente é. O cuidado é a paixão do tratar bem ao próximo, de fazer bem aos outros. É o contrário da crueldade. Quem cuida protege a vida, protege o sonho, o desejo, o bem-estar do outro. Cuidado é a paixão da auto-doação ao próximo.
Gn 1-11 tenta ensinar que esse par de paixões duplas-antagônicas está presente em cada pessoa e em cada realização humana. A nossa responsabilidade é restringir a arrogância-crueldade mediante a valorização da criatividade-cuidado, "cuidando" que nossa criatividade não seja arrogante e nosso cuidado não seja cruel. Pena que algumas religiões e filosofias pensem que se pode restringir a arrogância-crueldade apenas com boas doutrinas ou boas idéias ...
Oi Júlio, aqui é o Calvani.
ResponderExcluir(não precisa publicar meu comentário - só estou escrevendo para fazer contato contigo e saber seu email)
Quem me informou sobre seu blog foi o Handall, um excelente rapaz, de boa cabeça e com um grande futuro na teologia.
Acabo de ler o post sobre paixões e gostei muito. Me fez lembrar o conceito tillichiano de ambiguidade... aliás, também apreciei o que vc escreveu sobre a teologia narrativa, que tenho apreciado bastante.
Futuramente farei comentários publicáveis no seu blog, ok? Estou registrando nos meus "favoritos".
Estou morando agora em Campo Grande (MS), como "missionário". O site da nossa missão é:
www.paroquiadainclusao.com
meu email: cecalvani@hotmail.com
abs