Introdução
O tema que nos reúne nesta Mesa-Redonda é tão amplo e relevante que nos desafia a, no espaço de tempo de que dispomos, oferecer subsídios para uma discussão já em andamento e que não dá sinais de se atenuar. Em vários artigos e encontros acadêmicos nos quais o tema tem sido tratado recentemente no Brasil, o caminho mais trilhado é o da discussão sobre a cientificidade da teologia, o que lhe garantiria um lugar juntamente com as demais ciências que formam, em seu conjunto, supostamente unificado, a universidade. Tendo em vista que, em mais de uma ocasião, me pronunciei sobre o caráter não-científico da teologia, a coerência me obriga a tomar outro caminho – obrigação, aliás, que é facilitada pela qualidade e propriedade com que vários colegas têm percorrido o primeiro caminho mencionado. Optei, então, por trazer à nossa discussão algumas questões, não a respeito do estatuto da teologia na universidade, mas a respeito do estatuto da própria universidade (Por economia linguageira uso os termos teologia e universidade no singular, entretanto, nem teologia nem universidade são instituições e práticas singulares, mas múltiplas, multiformes, diversificadas).
Nas últimas décadas do século passado, a missão, a identidade, ou a responsabilidade da universidade têm sido extensamente debatidas por ilustres pensadores e docentes, bem como por administradores, políticos, estrategistas e financistas. Em um mundo de sociedades e economias globalizadas, de disputas político-militares de alta e baixa intensidade, de rendição ao charme da tecnociência, de passagem para o estilo tecnoinformático de vida, a universidade se vê frente a frente com desafios de elevada monta, o que a tem obrigado a se repensar e, segundo muitas vozes, a se reinventar. Mantendo isto em mente, me proponho a tecer alguns breves e arriscados comentários, inspirados por minha experiência de inserção nos debates com acadêmicos universitários e por alguns dos textos que li, sobre que tipo de universidade deve existir para que a Teologia sinta-se à vontade dentro dela.
1. Universidade e projeto político emancipatório
Inicio com a conclusão do geógrafo Milton Santos, em palestra proferida no ano 2000, sobre a situação da universidade brasileira e seu futuro:
Mas não seria justo concluir com uma rota pessimista. Com todos os seus defeitos atuais, tão parecidos em quase todo o mundo, as Universidades geram o veneno e o antídoto, mesmo se em doses diferentes. Lugar de um saber vigiado e viciado, elas são, também, e ainda, o único lugar onde o contra-saber tem a possibilidade de nascer e às vezes prosperar. Isto pode ser o resultado de esforços, de cientistas pioneiros, agrupados ou não. Mas para guardar e manter o pensamento independente, é indispensável que a instituição universitária aceite desinstitucionalizar-se, caminho único para evitar que o excesso de regras e de mandos acabe por esterilizar as suas possibilidades de um trabalho realmente livre, voltado para o interesse geral. A tarefa de incorporar a Universidade num projeto social e nacional impõe primeiro a criação e depois a difusão de um saber orientado para os interesses do maior número e para o homem universal. (SANTOS, Milton. A Universidade: da Intencionalidade à Universalidade. Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ Volume 23, 2000, p. 3)
Destaco desta fala: a teologia só poderá sentir-se à vontade em uma universidade que não seja espaço de um “saber vigiado e viciado” – vigiado pelos naturalistas e racionalistas de plantão, viciado pelos corporativismos docentes, pelos esquemas hierarquizados de financiamento e difusão da pesquisa, vigiado pelos estrategistas globais de finanças e segurança internacional. A teologia sentir-se-á à vontade em universidades que priorizem produzir os “contra-saberes” emancipatórios e enfrentar com “in(ter)dependência” as pressões externas e internas para ser uma instituição tradicionalista e subserviente ao poder econômico-militar.
Somente esse tipo de saber, segundo Milton Santos, capacitaria a universidade a se inserir democraticamente na construção, coletiva, de um projeto político nacional, com tons universalizáveis, que se contraponha à forma de globalização atualmente em curso hegemônico. A teologia, se fiel à sua longa tradição de fidelidade à Palavra de Deus acima de qualquer outra fidelidade – inclusive acima da fidelidade às Igrejas nas quais se realiza – poderá contribuir significativamente com a construção desses contra-saberes, pois é, ela mesma, um dos mais importantes contra-saberes da tecnociência ensimesmada e dominante.
2. Universidade e conhecimento plural
O conhecimento pluriversitário é um conhecimento contextual na medida em que o princípio organizador da sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada. Como essa aplicação ocorre extra-muros, a iniciativa da formulação dos problemas que se deve resolver e a determinação dos critérios de relevância destes é o resultado de uma partilha entre pesquisadores e aplicadores. É um conhecimento transdisciplinar, que pela sua própria contextualização, obriga a um diálogo ou confronto com outros tipos de conhecimento, o que torna internamente mais heterogêneo e mais adequado a ser produzido em sistemas abertos menos perenes e de organização menos rígida e hierárquica. (SANTOS, Boaventura de S. A universidade do século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. p. 29-30.)
O conhecido sociólogo e militante político Boaventura de Sousa Santos tem escrito e debatido amplamente sobre a ciência e a Universidade contemporâneas. No texto de que extraí a citação acima, Boaventura insere a universidade, como Milton Santos, no caminho de colaboração com a construção de projetos políticos alternativos à globalização capitalista. Para ele, tal responsabilidade exige que a universidade reconheça o seu caráter plural, pois que o conhecimento não mais se pode pensar como unitário, uniforme, único, universal (metafísico, como diria Habermas; forte, como diria Vattimo, ontoteológico, como diria Heidegger; ou fundacionista, como diria Rorty). Esse conhecimento pluriversitário é, simultaneamente, contextual e transdisciplinar – ou seja, não pode ser único, não deve ser reduzido às disciplinas em que se costumou manifestar, não tem o direito de usurpar o espaço de outros saberes não-científicos e, acima de tudo, não pode assumir a pretensão de validade universal – logo, hegemônica e excludente.
Em uma universidade que se construa pluriversitariamente, o saber teológico não teria problemas em se localizar e colaborar na construção de saberes emancipatórios, científicos ou não tão científicos – mas saberes legítimos, válidos, validados – não pela comunidade acadêmica ensimesmada, mas democraticamente validados pelas sociedades a quem o saber deve estar a serviço [“Começa a ser socialmente perceptível que a universidade, ao especializar-se no conhecimento científico e ao considerá-lo a única forma de conhecimento válido, contribuiu activamente para a desqualificação e mesmo destruição de muito conhecimento não-científico e que, com isso, contribuiu para a marginalização dos grupos sociais que só tinham ao seu dispor essas formas de conhecimento.” (idem, p. 56)]
Tal universidade deverá assumir os riscos de se inserir no estilo de vida democrático e nas lutas constantes que se dão nesse estilo de vida e espaço de atuação dos mais diversificados atores e interesses sociais. Assumindo essa tarefa, a universidade só poderá ser beneficiada pela presença dialogante e crítica da teologia, contra-saber que prima pela contextualidade, pela ecumenicidade, pela eticidade, pela publicidade – como expressão teo-lógica, ou seja, expressão do amor divino pela criação, encarnado e incorporado pelas pessoas que O amam e vivem de forma fiel ao Seu projeto libertador.
3. Universidade e a convocação ao pensar
Encerro minha fala trazendo para o debate a voz de outro ilustre acadêmico, Jacques Derrida:
É possível falar desta nova responsabilidade que tenho invocado apenas através de uma convocação à prática. Seria a responsabilidade de uma comunidade de pensamento para a qual a fronteira entre pesquisa básica e aplicada não estaria mais assegurada, ou, de qualquer forma, não sob as mesmas condições de outrora. Nomeio-a de comunidade de pensamento em sentido amplo – “ao largo” – ao invés de uma comunidade de pesquisa, de ciência, ou filosofia, visto que estes valores são, na maior parte do tempo, sujeitos à autoridade inquestionável do princípio da razão. Ora, razão é apenas uma espécie de pensamento – o que não significa que o pensamento é ‘irracional’. Tal comunidade iria interrogar a essência da razão e do princípio da razão, os valores do básico, do principial, da radicalidade, da arché, em geral, e tentaria extrair todas as conseqüências possíveis deste questionamento. […] Eu insisti, naquele relatório [prestado ao governo francês a respeito de uma escola internacional de filosofia], em enfatizar a dimensão do que, neste contexto, chamo de ‘pensamento’ – uma dimensão não redutível à técnica, à ciência, ou à filosofia. (DERRIDA, Jacques. Eyes of the university: Right to philosophy 2. Stanford: Stanford University Press, 2004, p. 148)
Em tal tipo de universidade a teologia ficaria à vontade – e a voz de Derrida me faz voltar a atenção não mais para a universidade, mas para a teologia – pois que ela é pensamento: não técnico, não científico, não tecnológico; mas pensamento religioso, disciplinado e rigoroso; características que a distinguem do testemunho, da adoração, da oração, do ritual e, em especial, do dogma – mas não a afasta de sua origem: as comunidades de fé que aprenderam, com Cristo, a ouvir o clamor das pessoas e da natureza que gemem sob o peso da indignidade, da desumanização, da desnaturalização. Pensamento que não cessa de questionar uma razão ensimesmada, patri-cêntrica, submissa aos imperativos do poder, da mídia, da técnica e do mercado. Pensamento que, simultaneamente, não cessa de questionar as instituições religiosas que permanentemente se perpetuam em usurpar a fé e a vida das comunidades de fé. Pensamento que não cessa de questionar a si próprio, posto que jamais isento de degenerar-se em mera tecnologia religiosa, filosofia institucional, ciência des-amorante.
Nas palavras do apóstolo Paulo, a teologia é um pensamento apto, sempre que necessário, para “a destruição de fortalezas, derrubando razões e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus” (II Co 10,4-5). Pensamento, por isso, arriscado, que deve se vigiar e ser constantemente vigiado para não se tornar arqui-pensamento, pseudo-pensamento, cessação do pensamento. Que deve se posicionar na universidade como espaço de participação de outsiders, como caixa de ressonância dos clamores da sociedade e da natureza, como parceira de diálogo, como apoiadora, como companheira, como incentivadora da pesquisa, dos saberes e contra-saberes, de todo autêntico ‘pensamento’.
mas foi justamente isso que eu quis dizer, júlio: de que a teologia precisa ocupar o seu devido lugar entre os saberes. não para ter seu estatuto epistemológico reconhecido como de uma ciência, stricto sensu, e, assim, "ser aceita" em pé de igualdade com outros discursos ditos científicos. mas que nós, teólogos, é que temos de aprender a nos posicionar frente aos demais discursos e pensadores dos mais variegados nichos, a fim de dialogarmos com tudo e com todos, fazendo a necessária ponte entre a fria e, muitas vezes, estéril teoria e a imprescindível prática que dela tem de decorrer, sob pena de ser, tão só e simplesmente, geradora de veneno e seu antídoto, "saber" vigiado e viciado, como você cita em seu texto. assim, a teologia cumprirá sua função de "contra-saber" ou "contra-ciência", como você bem descreve, sendo, de fato e com efeito, subversiva e revolucionária, tal como Jesus e seu discurso o foram, sem se tornar, no entanto, desagregadora, mas parâmetro e paradigma; promotora de uma reserva de sentido plausível e viável. desculpe-me se não me fiz claro o suficiente no post anterior! forte abraço. Handall.
ResponderExcluirFica então o dito pelo dito, meu caro benedito handall ... (rs)
ResponderExcluirabs
d que vcs tão falando?
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