sexta-feira, 23 de julho de 2010

Teologia: ciência de Deus? Conhecimento de Deus? Saber de Deus?

Supostamente este é um blog teológico. Então, que é teologia, afinal de contas? É hora de jogar um jogo, o jogo das definições, das delimitações, das demarcações - melhor ainda, um jogo de desconstrução. Desconstruir é o alter-ego do de-finir (estabelecer o fim), é um in-finir, ou seja, um não-estabelecer-o-fim. Joguemos.

Na Idade Média, preconceituosamente chamada de Idade das Trevas, a definição mais comum da teologia era a de "ciência de Deus". Ciência era um conhecimento certo, verdadeiro, indubitável. Teologia era a ciência de Deus, posto que era a colocação em conceitos da revelação do próprio Deus com o suporte da razão. Por isso, era a rainha das ciências, posto que a ciência mais verdadeira das verdadeiras ciências. Até a filosofia foi colocada sob a teologia (ancilla theologiae), serva da teologia, a senhora da Verdade.

Na Modernidade, primeiro a Filosofia, depois a Ciência (ciências), destronaram a teologia. Ela deixa de ser definida como ciência, e passa a ser conhecimento de Deus. Uma espécie de "ciência de segunda categoria", pois à teologia faltam os principais elementos caracterizadores da Verdadeira Ciência: empiria, replicação da experiência, matematização e modelização, predizibilidade e, mais recentemente, falseabilidade. Se por um tempo a teologia tornou-se ancilla philosophiae, enfim ela se torna inútil, atópica - ou seja, sem lugar na Univer(si)dade, no lugar onde a única Verdade é constituída - o universo da Ciência com sua pretensão de uma teoria única de tudo - a universidade-universalidade-univerdade.

É claro, teólogos e instituições eclesiásticas espernearam. Até hoje há os que tentam refazer o percurso e recolocar a teologia no lugar da Ciência. Quase ninguém mais a pensa como rainha das ciências, mas ainda são muitas as pessoas e instituições que desejam realocar a teologia na Universidade-universalidade-univerdade da Ciência certa e verdadeira. Louvável atitude. Dignificante busca. Salvar a teologia do cativeiro do conhecimento e ressituá-la na liberdade da Ciência.

Digna e louvável mas, a meu ver, equivocada. Prefiro de-finir desconstrutivamente a teologia como um saber. Saber, que tem a ver com sabor, gosto, paladar, prazer. Saber, que tem a ver com sabedoria, saber-viver, viver-bem. Saber, que tem a ver com bem-dizer, bendizer, dizer para-bem. Saber não é nem conhecimento, nem Ciência. Também não é um meio-termo entre conhecimento e Ciência. É, sem-o-ser, anti-conhecimento e anti-Ciência. É, sem-o-ser, mais-que-conhecimento e mais-que-Ciência, menos-que-conhecimento e menos-que-Ciência.

Teologia é um saber que não se encanta com sua própria cria - conceitos, leis, normas, teorias. É um saber que se encanta com o seu caminho - "sabeirar" (viver-saber), saborear, "sabedoriar". Saber-viver-benfazejamente. Não é, como a filosofia, saber-viver-bem, embora também ande nos caminhos da filosofia. Não é, como a ciência, saber-fazer-direito, embora também navegue em águas científicas. Teologia é um saber-fazer-bem-a-alguém. Um saber, para cristãs e cristãos, cujo modelo foi o Messias Jesus, alguém que soube-fazer-bem-a-quem-nem-sempre-recebia-bem-o-bem-feito. Saber-sabor-prazer-sabedoria. Louca-sabedoria, porém, mais sábia que a sabedoria da Filosofia ou da Ciência. Mais sábia, por que sabe que é saber-imperfeito-incompleto-limitado-parcial-temporário-transitório-transeunte.

Deve ser por isso que muita gente não gosta de teologia. Deve ser por isso que muitos teólogos almejam fazer Teologia-Ciência. O saber teológico exige que a gente aprenda a viver no caminho. Teologia é saber navegante, que só aporta para poder voltar a navegar. Aproprio-me infielmente das palavras de Fernando Pessoa:
"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar".

sexta-feira, 16 de julho de 2010

"Xemá Israel", Dt 6,4-9

"Ouve, ó Israel: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Portanto, amarás a YHWH teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as inculcarás aos teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando em teu caminho, deitado e de pé. Tu as atarás também à tua mão como um sinal, e serão como um frontal entre teus olhos; tu as escreverás nos umbrais da tua casa e nas tuas portas." Dt 6,4-9

No primeiro verso do texto encontramos a afirmação fundamental da fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente mantive a forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo entre o sujeito e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas interpretações e traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes dimensões da fé deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel, no sentido da exclusividade, ou seja, independentemente de quantos deuses tenham existido ou possam existir, para Israel há somente um Deus – YHWH – somente a Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel, somente YHWH é a fonte de vida para Israel; (b) YHWH é um Deus pluralmente singular, no sentido de que Ele não precisa de outros deuses para repartir as tarefas (no pensamento vétero-oriental, os deuses tinham funções especializadas, por isso era necessário crer em vários deuses que cumpriam essas diferentes tarefas, tais como guerrear, fazer chover, curar doenças, etc.). Como Deus pluralmente singular, YHWH é suficiente, Israel não necessita de nenhum outro Deus para atender as suas necessidades – ou seja, YHWH não é um deus especialista, parcial; e (c) YHWH é o único Deus não feito por mãos humanas, os demais deuses são ídolos, fabricação de mãos humanas e não são capazes de agir. O aniconismo da fé israelita não se restringia apenas à ausência do uso de imagens da divindade, mas era expressão da sua crença na exclusividade e singularidade de YHWH. Por outro lado, a expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre o Senhor e o povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo, fidelidade e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel.

Conseqüentemente, o povo que faz aliança com o fiel e único Deus, é convocado a construir sua identidade a partir do amor a Deus. A escolha do verbo amar no livro do Deuteronômio tem significado muito especial. O livro do Deuteronômio adota e adapta o estilo dos tratados internacionais assírios. Nesses tratados, o rei de um país mais fraco que se associava ao rei de um país mais forte assumia o compromisso de amar o rei mais poderoso. Semelhantemente, os juramentos assírios feitos por oficiais que iniciavam seu serviço ao rei assírio faziam a mesma exigência: o oficial do rei se comprometia a amar ao rei. Assim, ao convocar Israel a amar a YHWH, o Deuteronômio não só destaca a relação de aliança entre Deus e o povo, como afirma que YHWH é o único rei de Israel, o único rei a quem Israel deveria ser fiel, o único rei a quem deveria servir. A repetição da palavra todo(a) e a soma dos termos coração, alma e força indicam que o compromisso de Israel com YHWH deveria ser integral. Assim como YHWH é um, o povo de Israel deveria ser unido em um único propósito: ser fiel a YHWH. O coração do israelita não poderia se dividir entre seu Deus e outros deuses, entre YHWH e outras lealdades.

Dessa forma, as palavras de YHWH, sua instrução (torá), deveriam ocupar o pensamento do israelita o tempo todo, e deveriam ser ensinadas de geração em geração. Eis aqui a peculiaridade deuteronômica em relação à teologia sacerdotal – ao invés de enfatizar a santidade e a pureza, mantidas através da participação na vida litúrgica no Templo, a teologia deuteronômica enfatiza o estudo das palavras de YHWH e sua prática na vida cotidiana, como demonstração da fidelidade de Israel ao seu único Deus. Todo o tempo, todas as dimensões da vida, todas as gerações do povo de Deus são convocadas à meditação, estudo e prática da Torá de YHWH. Se viver dessa maneira, Israel dará testemunho da singularidade e exclusividade de YHWH a todos os povos.

domingo, 11 de julho de 2010

Expectativas e Realidade - um complexo relacionamento

Do ponto de vista abstrato, o tema deste post é "o que é ser humano". Trazendo para um espaço mais concreto e cotidiano, o tema pode ser descrito como "que posso esperar da minha vida?", ou, se você for uma pessoa mais proativa: "como conduzir a minha vida a fim de chegar aonde desejo?" Tratarei desse tema teologicamente.

Começo com as expectativas. Uma das descrições possíveis da pessoa humana à luz da Escritura cristã é a de que nós somos seres desejantes, seres cheios de expectativas, atraídos ao futuro, ao desconhecido, ao desafiador. Um exemplo dessa característica humana na Bíblia é o relato do "pecado" de Adão e Eva, em Gênesis capítulo 2. Atraídos pela expectativa de serem como deus, ambos decidiram comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tradicionalmente, a leitura desse texto bíblico nas igrejas cristãs ressalta apenas o aspecto negativo do pecado - na tradição calvinista, uma de suas correntes teológicas afirma inclusive que o ser humano é "totalmente depravado", ou seja, que mesmo quando faz o bem, o mal está presente.

Penso que devemos olhar para o texto a partir de outro ponto de vista - o de quem procura descobrir o "bem" no "mal" praticado por Adão e Eva (representantes simbólicos de toda a humanidade). O "bem" nesse mal é o deixar aflorar o desejo, a pulsão para a vida além da rotina, para além do cotidiano, para além da mesmice. Adão e Eva, humanos, buscam transcender a si mesmos, procuram na sabedoria e no poder (a serpente é símbolo dessas duas práticas humanas) um caminho para, simplesmente, ir além.

Onde, então, o "mal" nesse "bem"? No excesso do objeto desejado, na expectativa absolutamente impossível de ser atingida, no exagero de transcendência almejada. "Querer ser como deus" é o objeto excessivo, insustentável, inatingível, impraticável. Exagero fruto de menos sabedoria, de menos inteligência, de menos percepção das possibilidades e limites da aventura da existência humana. Deixe-me dar um exemplo extraído do campo dos esportes. O futebol é uma dimensão integrante da cultura e da identidade brasileiras. A tal ponto está internalizado em nosso modo de ser que, para muita gente, o Brasil (a seleleção de futebol, que não é o Brasil, convenhamos...) tem a obrigação de jogar bem, bonito, dar espetáculo e ainda ganhar a Copa do Mundo - "A copa do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa...". Expectativa completamente excessiva, exagerada - por isso, tanto choro e ranger de dentes quando deixamos a Copa apenas entre os oito melhores times do mundo. No esporte, perder faz parte do que deve ser esperado. Quem não sabe cultivar a expectativa da derrota não consegue, também, encontrar os limites da expectativa da vitória.

Seres desejantes que constantemente tropeçamos na realidade. Uma palavra tão imponente quanto indefinível. Não interessa entrar nos detalhes da reflexão filosófica sobre a realidade. Sejamos mais econômicos. Realidade é o que está entre nosso desejo e sua consumação, entre nossa expectativa e sua realização. Por isso falamos em "choque de realidade", que se dá quando o desejo não é consumado, a expectativa não é realizada, a transcendência não é alcançada.

Voltando para a teologia do humano na escritura cristã, a realidade com que temos de lidar em nossa condição de desejantes é a da morte, a da finitude, a da incompletude e imperfeição de nosso modo de ser e viver. Morte que, de inúmeras maneiras, se instala nas sociedades e suas economias, culturas, estruturas políticas, relações interpessoais, instituições, etc. Por isso, imagino, é que o autor de Eclesiastes escreveu que é melhor estar na casa do luto no que na da alegria - na casa da alegria o desejo não encontra limites, mas na casa do luto encontramos sabedoria para temperar nosso desejo com a dose certa de realidade.

Terminando ...

Parece-me que vivemos em uma época cultural em que a sabedoria do luto se esvaiu. Foi trocada pela excessividade da alegria, do prazer, da adrenalina. Excesso de consumir - coisas e pessoas, sonhos e ilusões, experiências e sensações. Exagero de transcendência - transcender a nossa finitude, encontrar o espaço ilimitado do desejo nunca mais postergado, sempre realizado na próxima compra, no próximo consumo, na próxima sensação ...

Tornamo-nos algo-além-do-humano e, assim, menos-do-que-humano; em uma paródia infeliz do sonho ambíguo de Nietzsche - das Übermensch. Ainda nietzscheanamente falando - nossa cultura matou Deus, e colocou no lugar dele o "sonho de consumo": o desejo ilimitado, a expectativa irrefreável, a transcendência inalcançável. Ao invés de irmos ao luto do divino, festejamos a sua ausência. Precisávamos, apenas, de amor à sabedoria - mas acabamos nos enredando nas "logias" (tecno-, -sofia, teo-, bio-, etc...). Imagino que se voltarmos à simplicidade do desejo-em-simplicidade, encontraremos formas muito mais interessantes e auto-realizadoras de satisfação.

terça-feira, 6 de julho de 2010

“Não carregarás o nome de YHWH, teu Deus, para a infâmia”

Eu sei que é uma tradução literariamente ruim, estamos acostumados com "não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão". A tradução, porém, tenta expressar com mais força, em português, o sentido da terceira palavra do Decálogo (Dez Palavras, mais conhecido na tradição cristã como os Dez Mandamentos). O texto descreve a pessoa (crente em um deus) como portadora, carregadora do nome divino – ou seja, o que a pessoa faz, repercute na pessoa de Deus. Se eu vivo uma vida nula, inútil, carrego o nome divino comigo para a nulidade. Se vivo uma vida injusta, carrego o nome divino juntamente comigo para o “Hall da Infâmia”. Por quê? Na cultura hebraica antiga, o nome não é apenas um rótulo, um identificador, mas uma aposta, uma descrição de caráter, uma declaração de identidade. Assim, carregar o nome divino é carregar a identidade divina, carregar a sua reputação, a sua respeitabilidade, a sua legitimidade. Daí, a palavra radical – “não carregarás ...”

A tradição judaica, desde tempos antigos, tem dado tanta importância a esta palavra que chegou a banir da fala pública o próprio nome divino. Quando, na leitura bíblica, um judeu encontra o nome de seu Deus, ao invés de pronunciá-lo, usa a palavra “Adonai” (Meu Senhor). Pode parecer excesso de literalismo, ou até mesmo de legalismo. Penso, porém, que devemos olhar para esta tradição com mais simpatia – é um excesso, sim, mas de reverência, de cuidado com a reputação divina. Excesso nascido do reconhecimento da nossa incapacidade (humana) de cumprir a promessa de nossa vocação divina: “como eu sei que, mais cedo ou mais tarde, vou caminhar para a infâmia, então é melhor cuidar preventivamente do Nome”.

Nós, cristãos, não sabemos bem o que fazer com esta palavra do Decálogo, até porque nosso Deus não tem nome. É apenas Deus, um título, um rótulo, um conceito. E abusamos desse “nome” em nossa fala cotidiana. Em algumas culturas, “Oh God!” é uma expressão gritada na hora do orgasmo (o que não é de todo ruim, pois o prazer é uma dádiva divina). Não, o problema não é a ligação do nome com o prazer, mas a banalização do nome, especialmente quando o prazer alcançado não tem nada a ver com a vocação divina para o prazer. No Brasil, expressões como “meu deus”ou “ai meu deus” (e semelhantes), tornaram-se interjeições proferidas a qualquer momento, ao ponto de não sabermos mais quando têm a ver com o clamor e a oração ou quando são apenas um substituto para um palavrão, ou outra interjeição qualquer.

Não! Não vou concluir o post com uma lição de moral. A questão aqui é teológica. A grande blasfêmia, a grande negação desta palavra do Decálogo está no modo metafísico da teologia. Que expressão majestosa, cheia de pompa e circunstância. Mas que é esse tal de “modo metafísico” da teologia? Uma teologia é metafísica quando ela é tão forte, tão cheia de si, tão segura e arrogante, que controla o Nome e o reduz a conceitos, modos de expressão litúrgica, experiências, doutrinas ou equivalentes. Em outras palavras, uma teologia metafísica chama tanto a atenção para si mesma, que esquecemos de Deus – ou, talvez melhor dizendo – confundimos a teologia com o próprio Deus e cremos mais na teologia do que em Deus.

Uma teologia que leva a sério esta terceira palavra do Decálogo suspende a certeza certa e forte sobre o Nome e fala de Deus em uma reverente atitude de certeza incerta. Certeza, não conceitual, mas pessoal – quando me perguntam sobre as provas da existência de Deus, só tenho uma: “conversamos diariamente” (uma prova que não prova nada, convenhamos!). Incerta, não por ignorância, mas por fé: “certeza do que esperamos, convicção do que não vemos”. Uma boa teologia, para mim, é uma teologia pós-metafísica, não-metafísica, ou fraca (ou qualquer outro rótulo que você preferir). É uma teologia que não chama a atenção para a sua própria palavra, mas encaminha a atenção para a palavra inefável (indizível) – o Nome. É uma teologia repleta de certezas incertas, que faz com que as pessoas que a lêem tenham mais perguntas do que respostas, mais admiração e espanto do que conhecimento sólido e definitivo; mais reverência e humildade do que intimidade e familiaridade com o Nome. Ou seja, uma boa teologia não carrega o Nome para a infâmia – se ela for para o Hall da Infâmia, irá sozinha. Mas, se chegar ao Hall da Fama, estará em excelente companhia!

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Religião Verdadeira!?

Uma das características do comportamento religioso, especialmente quando há uma organização institucional presente, é a crença de que só uma religião é verdadeira. E, é claro, a religião verdadeira é a minha. No caso do Cristianismo, é muito comum ouvir pessoas e instituições fazendo essa afirmação com base em textos bíblicos como "Eu sou o caminho, a verdade e a vida, neinguém vem ao Pai senão por mim", ou "E em nenhum outro há salvação; porque debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, em que devamos ser salvos".

Lidos superficialmente, estes textos realmente sugerem que só há uma religião verdadeira, a cristã. Entretanto, como a superfície dos textos normalmente não diz praticamente nada, precisamos prestar mais atenção ao que esses versículos de fato afirmam.

Note bem: não se está falando do Cristianismo, mas de Jesus - Ele é o único caminho e o único salvador. Não podemos confundir Jesus com as Igrejas Cristãs, nem com as doutrinas e confissões de fé, nem com as comunidades ditas cristãs. Jesus é uma pessoa, uma pessoa peculiar, divino-humana, diferente de todas as demais pessoas e irredutível a qualquer forma religiosa.

Jesus é, antes de tudo, um caminho, como diz o texto de João. Assim, sua proposta não é a de hierarquizar religiões, mas de hierarquizar caminhos, estilos de vida. Como se diz no sermão do monte, segundo o evangelho de Mateus: "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus". Não se trata, então, de religião, de confissão, mas de ação, de existência semelhante à do Messias Jesus. Quem faz a vontade do Pai celestial? Quem vive como Jesus, quem ama como Jesus, quem sofre como Jesus, quem ganha dinheiro como Jesus, quem morre como Jesus, quem ressuscita como Jesus ...

Ou, então, de acordo com um sermão apocalíptico de Jesus, segundo Mateus: "Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos visitar-te? E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes."

Ou, ainda, segundo Paulo, o apóstolo dos protestantes: "Portanto, és inescusável, ó homem, qualquer que sejas, quando julgas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu que julgas, praticas o mesmo. E bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade, contra os que tais coisas praticam. E tu, ó homem, que julgas os que praticam tais coisas, cuidas que, fazendo-as tu, escaparás ao juízo de Deus? Ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te conduz ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em favor o bem, procuram glória, e honra e incorrupção; mas ira e indignação aos que são contenciosos, e desobedientes à iniqüidade; tribulação e angústia sobre a alma de todo homem que pratica o mal, primeiramente do judeu, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem, primeiramente ao judeu, e também ao grego; pois para com Deus não há acepção de pessoas".

Deixo estes dois textos bíblicos sem comentário ou interpretação. Quem sabe a força chocante desses textos seja a melhor resposta para quem acredita ter a religião verdadeira e classifica todos os demais como idólatras, perdidos, etc. Quem sabe a força chocante desses textos seja o melhor desafio para quem acha que basta ser religioso para ser salvo.