domingo, 26 de setembro de 2010

Evangélicos - Em busca de inteligência política

Eu não queria mais falar sobre eleições e política neste ano. Mas não é possível calar. Pronunciamentos de líderes evangélicos sobre a política tem me causado revolta e assombro. Não me assombro com pronunciamentos de pseudo-evangélicos, de líderes politiqueiros, dinheiristas e chefes de igrejas-empresas. Revolto-me com pronunciamentos de líderes evangélicos honestos, cristãos comprometidos com a justiça, com a melhoria da vida humana, gente de caráter e testemunho dignos.

De pessoas assim não se poderia esperar pronunciamentos absolutamente néscios, sem um pingo de sabedoria, sem o mínimo de discernimento espiritual que se deveria esperar de líderes dignos. Não conheço todos os pronunciantes, conheço alguns, dentre esses há gente que eu admiro e respeito, embora sempre tenha me preocupado com a falta de clareza nos posicionamentos políticos.

A clareza agora é cristalina! Uma clara confusão entre moralismo e medo, por um lado, e ignorância política por outro. Fizeram-me lembrar de um artigo absolutamente inútil que Robinson Cavalcanti publicou na Ultimato, há meses, denunciando uma suposta conspiração gay e atéia contra a igreja. Contestei tal artigo, mas seu autor não se dignou a me responder. Recebi uma resposta de um líder evangélico, leigo, que dizia mais ou menos o seguinte: "o artigo pode não ter nenhuma prova, nehuma evidência, mas tem razão".

Só posso fazer um apelo: a meu grande amigo e um de meus padrinhos de casamento - retrate-se urgentemente. Voce não merecia estar sendo lembrado por um vídeo esdrúxulo em que demoniza partidos políticos e se vangloria de algo que não passa de falta de conhecimento sobre política e de ausência de discernimento e sabedoria. Voce é muito melhor do que esse vídeo!

Reforço o apelo: a pastores, pastoras, líderes leigos evangélicos honestos - retratem-se. Aprendam. Busquem inteligência política.

Não podemos mais confundir moralismo com medo, passividade com neutralidade política. Não há neutralidade em política. Não há ausência de política no exercício do poder religioso. Não se confundam. não se enganem. As pregações pastorais são, sempre, políticas. São políticas por que exercícios de poder. Só quem não saiu do jardim de infância ainda pensa que política só tem a ver com partidos e eleições. Política tem a ver com o exercício do poder, em todas as relações, em todos os níveis da vida social. Pregação do evangelho é, sempre, política - posto que anúncio do Reino de Deus - poder que questiona todo e qualquer exercício dominador do poder, por pessoas, partidos, leis e instituições.

Evangélicos, aprendamos a viver a integralidade da missão. Não basta afirmar "missão integral", há que se aprender a integralidade da missão - e isto exige inteligência política.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O olfato de YHWH

No mundo moderno, a filosofia e a ciência subordinaram o olfato (juntamente com o paladar e o tato) à visão e audição, posto que aquele pouco podia oferecer à construção de conceitos, comparativamente aos sentidos da visão e da audição. Montaigne chegou a afirmar (injustificadamente) que um mundo ideal é um mundo inodoro, posto que seria o mundo puro das crianças.
No mundo contemporâneo, o olfato volta a ocupar lugar de destaque na reflexão filosófica e científica, em função de suas aplicações práticas: “Nos dois últimos séculos os odores ganham espaço de investigação e a cultura do corpo desodorizado, motiva a produção imensurável de produtos que mascaram os odores do corpo: desodorantes, cremes, sabões, pós e pomadas. Surge uma nova apropriação do sentido do olfato pelo mercado, através da comercialização dos odores, com produtos médico/sanitários amplamente utilizados pela enfermagem. Incluso ao controle dos odores do corpo, se promovem o diagnóstico, tratamento e vigilância dos odores ambientais em todos os espaços da atividade humana, públicos ou privados.” (ESTÉTICA DOS ODORES: O SENTIDO DO OLFATO E A ENFERMAGEM)
O culto ao corpo agradavelmente aromatizado é profundamente ambíguo. Se, por um lado, exalta a beleza e o prazer; por outro, oculta sob o aroma de perfumes prazerosos o pútrido cheiro da morte que se estende às pessoas excluídas da vida consumista. Por isso, recuperar a discussão bíblica sobre o olfato é importante para a construção de uma teologia relevante para a humanidade contemporânea. Segue um início sugestivo dessa recuperação.

Um aroma ambíguo
Em Êxodo, Levítico e Números é usada 37 vezes a expressão “cheiro suave” referindo-se aos sacrifícios ofertados a Deus, por exemplo: Lv 6:21 “Numa assadeira se fará com azeite; bem embebida a trarás; em pedaços cozidos oferecerás a oferta de cereais por cheiro suave ao Senhor”. O termo incenso é usado 53 vezes nesses mesmos livros, indicando também o aroma que deveria permanecer no templo, especialmente durante os sacrifícios. Em Deuteronômio, porém, o sacrifício não é descrito como “cheiro suave” e somente uma vez é usado o termo “incenso” (33,10). No próprio Pentateuco encontramos a tensão que a visão sacrificial oferecia à reflexão teológica vétero-israelita. Essa tensão está presente sobremodo na tradição profética.
A ambigüidade do odor dos sacrifícios e do incenso está em que eles podem ser um péssimo cheiro perante o Senhor, como no caso da rebelião de Corá em Números 16: “35 Então saiu fogo do Senhor, e consumiu os duzentos e cinqüenta homens que ofereciam o incenso. 36 Então disse o Senhor a Moisés: 37 Dize a Eleazar, filho de Arão, o sacerdote, que tire os incensários do meio do incêndio; e espalha tu o fogo longe; porque se tornaram santos 38 os incensários daqueles que pecaram contra as suas almas; deles se façam chapas, de obra batida, para cobertura do altar; porquanto os trouxeram perante o Senhor, por isso se tornaram santos; e serão por sinal aos filhos de Israel. 39 Eleazar, pois, o sacerdote, tomou os incensários de bronze, os quais aqueles que foram queimados tinham oferecido; e os converteram em chapas para cobertura do altar, 40 para servir de memória aos filhos de Israel, a fim de que nenhum estranho, ninguém que não seja da descendência de Arão, se chegue para queimar incenso perante o Senhor, para que não seja como Corá e a sua companhia; conforme o Senhor dissera a Eleazar por intermédio de Moisés.”
A mesma valoração negativa se faz quando os sacrifícios e o incenso são, ou ofertados a outros deuses, ou encobrem a injustiça. Então, tornam-se abomináveis a YHWH, por exemplo:
(a) Ezequiel 6:13 Então sabereis que eu sou o Senhor, quando os seus mortos estiverem estendidos no meio dos seus ídolos, em redor dos seus altares, em todo outeiro alto, em todos os cumes dos montes, e debaixo de toda árvore verde, e debaixo de todo carvalho frondoso, lugares onde ofereciam suave cheiro a todos os seus ídolos;
(b) Isaías 1:13 Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação. As luas novas, os sábados, e a convocação de assembléias ... não posso suportar a iniqüidade e o ajuntamento solene!
(c) 2 Reis 17:11 (Israel) “... queimaram incenso em todos os altos, como as nações que o Senhor expulsara de diante deles; cometeram ações iníquas, provocando à ira o Senhor”; e 2 Reis 23:5 (Judá) “Destituiu os sacerdotes idólatras que os reis de Judá haviam constituído para queimarem incenso sobre os altos nas cidades de Judá, e ao redor de Jerusalém, como também os que queimavam incenso a Baal, ao sol, à lua, aos planetas, e a todo o exército do céu”.
Em oposição ao regime sacrificial, o Salmo 141:2 “Suba a minha oração, como incenso, diante de ti, e seja o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde!” apresenta a oração como um perfume que sobe até Deus e o comove a agir favoravelmente!
Estes exemplos mostram que já na discussão teológica do antigo Israel o acesso sacrificial a Deus era questionado. Quando o autor de Hebreus afirma que o sacrifício de Jesus é definitivo e elimina a lógica sacrificial enquanto tal, está dando continuidade a este tipo de reflexão profética sobre a inutilidade do sacrifício. A persistência da lógica sacrificial no Cristianismo revela uma inconsistência nas práticas cristãs. Inconsistência que tem servido para a manutenção de situações de injustiça e opressão, legitimadas pela crença de que o sacrifício é um pequeno preço a ser pago para alcançar a vida eterna ou, na teologia da prosperidade, as bênçãos de Deus no presente. O Deus de judeus e cristãos, porém, não necessita de sacrifícios e abomina a lógica sacrificial. Autores como René Girard e Franz Hinkelammert, críticos da lógica sacrificial, mereceriam ser mais estudados em nossos dias posto que são por demais relevantes em sua celebração acadêmica da vida!

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Deus Imprevisivelmente Fiel

No post anterior destaquei a imprevisibilidade de Deus. No testemunho bíblico, Deus é retratado como imprevisível, mas fiel - imprevisivelmente fiel. Fiel é a pessoa em quem se pode confiar, de quem se pode depender quando necessário. A fidelidade é a permanência, em uma pessoa, das ações e dos valores que permitem a ela, e aquelas com quem ela se relaciona, se re-conhecer e ser re-conhecida. A fidelidade é a permanência na mudança, no devir constante da construção e reconstrução da identidade pessoal, social, cultural, política, religiosa. A fidelidade é a marca dos relacionamentos confiáveis, que dão segurança, estabilidade em meio à incerteza e imprevisibilidade da vida. Segundo Sponville, a fidelidade é a virtude da memória: “É este o dever da memória: piedade e gratidão pelo passado. O duro dever, o exigente dever, o imprescritível dever de ser fiel!” E se fidelidade é o dever da memória, reconhecemos a fidelidade de Javé em sua memória: pois Javé se lembra de seus compromissos, mas se esquece dos pecados de seu povo! Memória que não é só re-viver o passado, mas também re-significá-lo, transformando-o no presente e futuro.

Fidelidade é virtude relacional, e a sua validade depende do objeto de sua atração: "a fidelidade só deve dirigir-se ao que vale, e proporcionalmente – se ouso dizer, já que se trata de grandezas por natureza não-quantificáveis – ao valor do que vale. Fidelidade primeiro ao sofrimento, à coragem desinteressada, ao amor...” Embora não se referindo a Deus, o texto de Sponville é fiel ao caráter de Javé: deus fiel ao seu povo que sofre (Ele é o Deus que ouve o clamor), fiel à salvação de seu povo (desce e liberta corajosamente se solidarizando com o povo que sofre), fiel à aliança que estabelece com os seus (hesed divina, amor misericordioso e fiel que sustenta a relação familiar de Javé com seu povo).

Em meio às vicissitudes da história, Javé permanece fiel, e porque Ele é fiel, também "o justo viverá por sua fidelidade” (Hc 2,4). Javé é fiel sim, mas não previsível. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, os pensamentos de Javé não são os nossos pensamentos (Is 55,8), por isso somos incapazes de capturar a Sua fidelidade e domesticar Javé conforme nossa imagem e semelhança. No entanto, a fidelidade de Javé não é sinônimo de previsibilidade. Javé é imprevisivelmente fiel: teimoso, se preferirmos um adjetivo menos polido; zeloso, se escolhermos um adjetivo extraído das Escrituras. O povo de Israel celebrava a fidelidade de Javé, mas vez após vez, foi confundido por Javé para aprender que não poderia controlar o seu deus como faziam outros povos do Antigo Oriente. Para aprender que somente Javé é Deus, somente Ele mesmo é Javé – deus e não ser humano.