quinta-feira, 3 de março de 2011

O ponto de partida da religião

Os estudiosos das religiões e religiosidade humana têm oferecido várias explicações da origem da religião na vida humana. Durante a Modernidade, de um modo geral, as explicações acentuavam alguma fragilidade humana – medo da morte, ignorância do funcionamento da natureza, alienação política, dependência psíquica, etc. Até hoje é muito comum explicar a religião a partir da necessidade do indivíduo suprir alguma carência real ou sentida. Essas explicações não são de todo inadequadas. Todavia, não são completas. É possível perceber o ponto de partida da religião na relacionalidade humana, na intersubjetividade – focando a religião, então, de modo mais positivo, criativo.

Para fazer isso, vou apresentar parte dos escritos de um filósofo ítalo-norte-americano, John Caputo, nosso contemporâneo, que faz uma reflexão pós-moderna sobre a religião. O texto que segue tem uma linguagem mais técnica, então, se você não é muito afeito à terminologia técnica da teologia e filosofia, preste mais atenção ao projeto geral de Caputo: religião é solidariedade, religião é busca de autonomia e liberdade...

Não é possível, segundo Caputo, compreender a religiosidade humana se o lugar a partir do qual a estudamos não for o das orações e lágrimas. Isto não quer dizer que pessoas não-religiosas sejam incapazes de compreender a religião, mas, sim, que o próprio conceito moderno de “religião” é um empecilho à compreensão do fenômeno religioso. Religião é um conceito moderno, racional, construído mediante um radical binarismo que contrapôs fé e razão, filosofia e religião como pólos antagônicos no espaço da Verdade. A religião é concebida na Modernidade como uma falta, um resquício do mundo pré-moderno e, por isso, na melhor das hipóteses infra-racional, para não dizer irracional.
Os filósofos modernos, climaticamente no Iluminismo, conceberam a religião como uma esfera separada da existência humana e projetaram tal compreensão para as crenças e práticas cristãs da Europa pré-moderna. Tal maquinaria conceitual lhe impediu de enxergar adequadamente o fenômeno religioso, tomado exclusivamente como uma atitude dogmática, pré-racional ou mesmo irracional, antagônica à razão, às ciências e à filosofia. A religião foi extirpada do que lhe é próprio – a experiência humana da busca – e reduzida à moralidade, ou a um desvio da libido, ou a consciência alienada.
Retornando a Agostinho e Anselmo, Caputo nota que a experiência pré-moderna da religião cristã não pode ser concebida como uma esfera particular da experiência humana. A religião impregnava a mentalidade, a cosmovisão européia pré-moderna de tal modo que o adjetivo “religioso” não se referia a pessoas que “tinham” religião, mas ao grau de compromisso da pessoa com a religião – o que chamaríamos hoje de religiosidade ou de espiritualidade. Ninguém conceberia religião como uma esfera particular da vida, mas como o próprio ambiente da vida humana. Não se poderia conceber Deus como objeto de dúvida, mas apenas como sujeito de busca (ou não). Tanto Agostinho como Anselmo falam da busca de Deus nos termos de um círculo, no qual Deus já é concebido como existente, soberano, digno de honra e adoração. O Deus conhecido é o Deus a quem se busca, o Deus que se deseja conhecer mais e melhor.
O “coração inquieto” de Agostinho e a “fé que busca conhecimento” de Anselmo, por outro lado, não podem ser entendidos se lidos a partir da concepção moderna de sujeito – um sujeito racional, centrado, auto-consciente, realizador. Só podem ser adequadamente compreendidos se lidos a partir da noção pré-moderna de sujeito como uma criatura, imperfeita, como que incompleta, fragmentada, angustiosamente crente, permanentemente buscando o Deus que já encontrou. Um Deus que não está “lá fora”, desconhecido, mas que participa da própria busca, que está “aqui dentro”, no coração desassossegado, na mente inquieta, no corpo sofredor e criativo. O sujeito moderno, “que busca autonomia”, que abandonou a fé como caminho da compreensão, criou uma barreira intelectual entre si e o sujeito pré-moderno, “que busca conhecimento (de Deus)” encontra sua autonomia na relação com o próprio Deus, na própria heteronomia.
Não! Caputo não é ingênuo, nem pretende um retorno aos tempos pré-modernos. Ele sabe que as instituições religiosas dominantes desempenharam um papel nefasto no confronto com a razão em busca de autonomia. Não desconhece o suplício de Galileu. Não desconhece o martírio dos hereges. Sabe que a religião pode ser instrumento de poder, de negação do humano, de subordinação ao despotismo, de obscurantismo. Sabe, porém, e melhor, que “religião” não existe. Existem pessoas e instituições praticantes de religião, que podem fazer dela o contrário do que a religião promete. Sabe que os tribunais da Inquisição foram, com razão, substituídos pelo transcendente Tribunal da Razão somente. Por isso também sabe que de tribunal em tribunal, a religiosidade humana, a espiritualidade, o próprio Deus, são meros réus, pobres suplicantes sem advogado capaz de defendê-los da acusação soberana que lhe paira sobre a cabeça.
Não! Não é possível compreender a religião sem orações e lágrimas. Lágrimas compassivas de quem escuta o clamor das pessoas que sofrem, das vítimas do mundo civilizado, organizado, estruturado, cujas instituições desumanizam sob o pretexto de humanizar. Lágrimas de quem escuta o seu próprio clamor, pessoa imperfeita, incompleta, auto-cindida. Lágrimas intensamente passionais, e igualmente densas de intensidade racional. Lágrimas que fecundam o árido solo da oração, visto que quem ora o faz porque experimenta a ausência de seu deus, a não-presença de seu horizonte de sentido, a angústia da certeza incerta da fé. Religião não é questão de verdade ou falsidade. É questão de relacionamento, de intimidade, de fidelidade ou infidelidade, distanciamento, inimizade ou solidariedade. Não se pode compreender a religião se dela abstrairmos os corpos vivos, patéticos, intersubjetivos, corpos que permanentemente tentam se transcender na mente, na cultura, nas artes, no trabalho, na política, no lazer, no amor, na religião...

4 comentários:

  1. Apenas para acrescentar, Caputo é um exímio intérprete de Heidegger!

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  2. A religião que domina e captura Deus por meio da racionalidade ou extremismo sobrenatural deixa de ser religião. A religão basta a cada dia o seu próprio mal.

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  3. Muito boa exposição prof. Julio.

    Como diria McGrath - Teologo é aquele que esta dentro da comunidade de fé, que entende os anseios e dificuldades de sua comunidade.

    Ou como Ninian Smart diria - Fazer teologia é simplesmente articular uma fé, se não há uma fé para se articular a teologia nada tem a dizer ou expressar.

    Muito bom Prof. Julio, excelente texto.

    Prof. Julio, estive vendo outros posts do seu blog, e vi um sobre "a dimensão publica da teologia" e o Prof. cita algumas coisas relacionadas a teologia publica, queria saber, os maiores articulares dessa teologia é realmente Dennis McCann Max Stackhouse? Existe desenvolvimento relevante dela em nosso país?

    Um abraço, na graça e paz de Jesus.

    Márcio Gomes

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  4. Olá Júlio!

    Que grata satisfação encontrar seu blog, que por sinal, está muito bom, e por isso, passo a segui-lo a partir de agora.

    Aproveito para lhe convidar a conhecer o meu blog, e se desejar também segui-lo, ficarei muito honrado.

    www.hermesfernandes.com

    Pela causa do Reino e de Sua Justiça!

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