domingo, 30 de maio de 2010

"Foi a vontade de Deus!"; "Deus levou para um lugar melhor!"

Tem razão, as sentenças do título pertencem a um velório ou enterro. Nunca me conformei com esse sentimento fatalista. Depois que comecei a estudar teologia fui descobrindo o modo fundamentalista desse sentimento: a onipotência de Deus, entendida de modo tão mecânico que que, de um jeito ou de outro, tudo o que acontece tem nele a sua causa última. Essa idéia tem suas variações, tanto no meio acadêmico, quanto no fundamentalista, quanto nos ambientes eclesiais. A forma mais comum de lider com essa forma mecânica de onipotência divina tem sido a de atribuir a Deus distintos graus de vontade: determinativa, ordenativa, permissiva e semelhantes. Especialmente esta última tem servido de explicação satisfatória para muita gente. Por quê? Porque em certo sentido ela isenta deus de responsabilidade pelo sofrimento humano - ele permitiu - ao mesmo tempo que mantém sua onipotência. Por outro lado, garante uma boa dose de "livre-arbítrio" temperada com culpa para o ser humano. No final, todo mundo ganha - exceto quem sofre, é claro!

Essa visão da divindade é muito mais próxima da do filósofo Aristóteles do que das escrituras judaico-cristãs. É claro que o casamento entre filosofia e teologia, em seus modos metafísicos: tudo se explica a partir de uma única causa, tudo subsiste como uma grande unidade ontológica (de natureza ou essência), tudo se explica a partir de uma única e verdadeira explicação racional-especulativa (não-científica, mas filosófica ou teológica) tem durado por séculos. Heidegger foi um dos filósofos que descreveu criticamente esse casamento e chamou essa família de ontoteologia - literalmente, teologia do ser ou, para brincar com as palavras, ser da teologia; ou teologia filosófica ou, ainda, filosofia teológica. Seja como for, essa visão de Deus tem assombrado as igrejas cristãs até hoje, e pior, tem feito parte das doutrinas oficiais e dos dogmas de várias (se não de todas).

Se queremos encontrar explicações teológicas cristãs para o sofrimento, porém, temos de abandonar essa concepção metafísica e mecânica da divindade. O deus de quem a escritura dá testemunho é radicalmente diferente dessa imagem ontoteológica. Na escritura, deus é tão poderoso quanto fraco, tão racional quanto emotivo, tão fiel quanto imprevisível. A pessoalidade atribuída a deus na escritura, conquanto não possa ser interpretada literalmente, afasta completamente qualquer possibilidade de descrever deus em termos metafísicos, mecânicos ou estáticos. Como pode ser todo-poderoso um deus que morre na cruz? Como pode ser todo-poderoso um deus que chora e sofre com a dor de sua criação? Como pode ser todo-poderoso um deus apaixonado e apaixonante?

A atribuição a deus de qualidades iniciadas com "oni-" (potência, presença, etc.) só gera confusão conceitual ao lado de uma muleta emocional para nós, seres humanos, que não sabemos assumir a nossa finitude. Deus é in-finito, de modo que seria menos complicado, talvez, que falássemos dele como in-potente, in-presente, in-sciente, in-... Fica esquisito, não é? Mas é melhor ser esquisito do que descrever deus de formas antagônicas ao seu agir testemunhado na escritura e experimentado por inúmeras pessoas, em várias culturas, em todos os tempos.

Se eu fosse usar o prefixo oni- para Deus só conseguiria falar dele como oni-amante, oni-misericordioso, oni-fiel, oni-gracioso, oni-amigo. Mas, pensando melhor, também para essas qualificações eu deveria usar o prefixo in. In-misericordioso, in-amante, in-gracioso, in-fiel (sic!). Aí a coisa complica. "In" é um prefixo privativo, a partir do qual só se pode fazer uma teologia negativa. Que tal, então, in-oni-potente, in-oni-sciente, etc.?

Uma última elucubração. E se assumirmos o prefixo "in" como um prefixo de parceria, de localização interna (in-tímo, in-terior, in-terno, etc.)? Ora, então, se uma criança morre antes da hora, deus morre também com ela. Se o Haiti é arrasado por furacões e ondas, deus fica desabrigado também. Se tsunamis arrasam as costas de ilhas e outras terras não-cristãs, deus se afoga junto com elas. Mas se deus não é nosso hiper-super-herói, para que crer nele? Complicado demais, não é?

No final das contas, é melhor amar a deus do que tentar explicá-lo. Ora, se um cônjuge jamais consegue entender seu par ou sua ímpar, por que deveríamos ser capazes de entender e explicar deus?

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Vida sintética

Jornais de todo o mundo repercutem a nota divulgada por J. Craig Venter sobre o sucesso dele e sua equipe na criação de um genoma a partir do qual produziu uma célula auto-replicante.
Em inglês, a nota dos cientistas: "We report the design, synthesis, and assembly of the 1.08-Mbp Mycoplasma mycoides JCVI-syn1.0 genome starting from digitized genome sequence information and its transplantation into a Mycoplasma capricolum recipient cell to create new Mycoplasma mycoides cells that are controlled only by the synthetic chromosome. The only DNA in the cells is the designed synthetic DNA sequence, including "watermark" sequences and other designed gene deletions and polymorphisms, and mutations acquired during the building process. The new cells have expected phenotypic properties and are capable of continuous self-replication." (http://www.sciencemag.org/cgi/content/abstract/science.1190719). A tradução é mais ou menos a seguinte (como não sou especialista em biologia, não posso garantir a correção da tradução de termos técnicos): "Relatamos o desenho, síntese e reunião do genoma 1.08-Mbp Mycoplasma mycoides JCVI-syn1.0 a partir da informação digitalizada da seqüência-genoma e seu transplante em uma célula recipiente Mycoplasma capricolum, para criar novas células micoides Mycoplasma que são controladas apenas pelo cromossoma sintético. O único DNA nas células é a seqüência sintética desenhada, incluindo seqüências "marca d'água" e outros polimorfismos e supressões de genes, bem como mutações adquiridas durante o processo de construção. As novas células têm as propriedades fenotípicas esperadas e são capazes de contínua auto-replicação."

Em outras palavras, a criação de formas não-naturais de vida em laboratório se concretizou nessa experiência que, certamente, será ponto-de-partida para vários outros experimentos. As implicaçoes éticas do experimento bem-sucedido já foram objeto de uma reunião no Congresso norte-americano, bem como suscitaram vários debates acadêmicos. Paul Rabinow, por exemplo, estudioso foucaultiano de antropologia e ética, afirmou: "este experimento certamente irá reconfigurar a imaginação ética" (21 MAY 2010 VOL 328 SCIENCE www.sciencemag.org). A discussão bio-ética em que o experimento mencionado está implicada já tem dado vários e significativos passos, ainda que em constante evolução e mutação.

Acrescento, irá reconfigurar também a imaginação teológica. A noção de vida tem sido usada por teólogos e eticistas cristãos para defender diversos postulados éticos no tocante a aborto, desenvolvimento sustentável, entre outros; bem como para indicar uma peculiaridade de Deus em relação ao ser humano - sua atividade como Criador. Embora o conceito teológico seja mais facilmente defensável, posto que Deus criou a partir do "nada", ou seja, não usou matéria pré-existente, várias de suas formulações terão de ser revistas.

Será que a teologia, mais uma vez, será a última a entrar pra valer nessa temática?

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Bem & Mal - um dualismo teimosamente persistente

Lembro-me de filmes e seriados que assistia em minha infância - Zorro, Bonanza, National Kid, Túnel do Tempo (WOW, que desfile de velharias...). Assisto filmes e seriados ainda hoje em dia, tipo, NCIS, Criminal Minds, CSI, etc. O mesmo vale para novelas e seriados nacionais.

Um abismo tecnológico separa esses dois momentos da televisão. Entretanto, do ponto de vista da visão de mundo, quase tudo continua como dantes. O dualismo, ou maniqueísmo ético ainda me impressiona e me espanta. Sua persistência é teimosa, ou sua teimosia é persistente. Maniqueísmo que é reforçado pelos pseudo-jornalísticos programas "policiais" dos Datenas da vida.

Tudo é muito simples: no mundo há gente boa e gente ruim. Mocinhos e Bandidos. Mocinhas e Bandidas. Você se identifica com os(as) mocinhas(os) e demoniza as(os) bandidos(as). Fácil. Tudo se resolve num piscar de olhos. Bandidagem pra cadeia e, quem sabe, até uma penazinha de morte não seria bemvinda?

Infleizmente, galera (ainda se usa esta gíria?), as coisas não são bem assim. Bandidagem é uma característica de todos e de todas nós. Na linguagem do apóstolo Paulo, o "velho ser" continua vivinho em cada pessoa, dando suas cartas, jogando com o "novo ser", tensionando a nossa existência momento após momento. Na maioria das vezes conseguimos restringir a nossa própria bandidagem a limites socialmente aceitáveis. Muita gente, porém, gosta de ultrapassar limites, ou não tem sequer alternativa, a não ser ultrapassar os limites do socialmente aceitável.

Solução? Não tenho! Lição: aprendi que podemos viver sob essa permanente tensão reprimindo a nossa bandidagem com alguma eficácia, especialmente quando aceitamos nossa finitude e permitimos, pela fé, que Deus entre no jogo.

Advertência: Deus não é o gênio da lâmpda mágica de Aladim, nem o Eraser (do filme estrelado pelo grandioso e injustamente ainda não premiado pelo Oscar de melhor ator) Arnold Schwarzenegger. Deus não mata o(a) bandido(a) dentro de nós. Deus prefere energizar a(o) mocinha(o) e mandar um recadinho: "se vira"!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Irracionalmente fraco, mas sabiamente poderoso

Falar a respeito de Deus é sempre assumir um risco. O risco de falar demais, ou de menos, ou de falar erradamente, ou de falar quando se deveria calar. Uma das razões desse risco está na própria finitude humana e na infinitude(?) divina. Essa diferença radical entre criaturas e criador obriga as criaturas a falar do criador mediante o uso de paradoxos (como a palavra dialética é muito marcada pelas discussões filosóficas, deixo-a de lado, pelo menos por enquanto). A irracional fraqueza de Deus só pode ser entendida paradoxalmente. Sim, continuo afirmando o que escrevi no post anterior, mas a afirmação da fragilidade louca de Deus só faz sentido para nós quando acompanhada da paradoxal afirmação de que Deus é sabiamente poderoso. Bem, não estou inventando nada. No texto de I Coríntios que citei no post anterior Paulo usa linguagem paradoxal: "Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens".

Gosto dos paradoxos, ele nos permitem brincar com as palavras. Você conhece alguma pessoa simultaneamente poderosa e sábia? Eu não! Você conhece alguma pessoa poderosamente fraca? Também não! Mas Deus é assim. Pelo menos paradoxalmente falando. Em outro texto do Novo Testamento, nos Evangelhos, encontramos um dito de Jesus: "Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para libertação da criação". Os paradoxos? (1) Filho do Homem - de cara, esse título diz que Jesus não é exatamente filho de Deus, mas de gente, como o profeta Ezequiel, no Antigo Testamento, que recebe esse título no livro que tem o seu nome. Escondido no título, porém, está uma grandiosidade. Um Filho do Homem aparece em Daniel capítulo 7, e é um poderoso libertador; (2) Seja Jesus um Filho do Homem à moda de Ezequiel, ou à de Daniel, nem profeta, nem libertador são, na visão normal da gente, servidores (aliás, você conhece servidores públicos que servem?). São gente importante. Deveriam mandar, comandar, ser exaltados, idolatrados. Tá certo que nenhum deles era um Pelé, uma Giselle Bündchen, um Usain Bolt ...

O único jeito sábio de usar o poder é servir às pessoas, é viver em benefício de tudo o que existe. Esse é o poder sábio de Deus. Ele não precisa de templos, de dízimos, de sacrifícios, de orações, de louvores, de teologias. Ele não precisa de nada, não precisa receber nada em troca de seu serviço, de seu amor, de seu poder. De fato, nós não servimos para nada do ponto de vista do Deus poderoso (sem sabedoria). Ele estaria muito melhor vivendo sozinho em sua trindade eterna. Mas! Não, não o Deus-pai de Jesus, companheiro do Espírito Santo. Quer mais um paradoxo? Deus precisa de nós. Deus precisa de Sua Criação. Sofrer necessidade - esse é o sábio poder de Deus.

domingo, 16 de maio de 2010

A irracional fraqueza de Deus

Sim! Deus é irracionalmente fraco. Não, não estou ficando louco (talvez esteja, ou talvez já seja há tempos). Quem inventou essa história de deus ser fraco foi um famoso teólogo dos tempos antigos, um tal de Paulo. Em uma de suas cartas teológicas escreveu: "Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que os homenns. Ora, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos. nem muitos os nobres que são chamados. Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas ignóbeis do mundo, e as desprezadas, e as que não são, para reduzir a nada as que são; para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus." ( I Coríntios 1:25-29)

A fraqueza e a irracionalidade de Deus são contrapostas por Paulo à sabedoria e poder humanos. Seu alvo principal é o Império Romano santificado pela filosofia dos gregos como o centro de poder que gpvernava impiedosamente todo o seu território, graças à força dos seus exércitos. Um poder que era ideologicamente legitimado pela pregação da Paz Romana, um anúncio de salvação - os povos conquistados deveriam ser gratos aos romanos, por que estes haviam trazido ordem para a vida caótica em que os bárbaros e incivilizados povos viviam. Isso é típico dos poderosos: o mundo deles é o único mundo verdadeiro, pacífico, harmonioso, ordeiro - positivismo antes da modernidade: ordem e progresso.

Diante de tal poder, Deus somente pode se apresentar como um Deus fraco. Deus não mata os inimigos, não conquista os povos, não impõe sua ordem e paz sobre as pessoas e nações. Ele não comanda, ele propõe. Ele não ordena, convida. Ele não mata, morre pelos inimigos. A paz de Deus é uma dádiva frágil - quem a quiser, a recebe. Quem não a quiser, fique à vontade para escolhar outra paz para sua vida. Por isso, não consigo acreditar no Deus que os poderosos Estados (Unidos e outros) anunciam; nem no Deus que as poderosas Empresas Eclesiásticas vendem através das Mídias.

Fraco, assim, só pode ser irracional. As traduções da Bíblia normalmente escolhem a palavra "louco" para traduzir a palavra do texto grego (môrón). Não é uma escolha ruim - afinal de contas, a loucura é o avesso da razão moderna; os loucos são os bodes expiatórios da sociedade científica, pacientes do poder psiquiátrico, psicológico, psicanalítico e outros psi-poderes. Assim as sociedades modernas lidam com Deus - colocam-no fora do espaço público, internam-no em clínicas sofisticadas, sob os valiosos cuidados dos detentores do saber. Quanto mais leio obras de teologia filosófica ou de filosofia teísta, tanto mais prefiro o Deus louco de Paulo. Por isso, também gosto de traduzir a palavra grega por irracional.

Acho que até é mais libertador falar em Deus como um ser irracional, pois já que fomos criados à Sua imagem e semelhança, também somos predominantemente irracionais. Afinal de contas, não foi o desejo do conhecimento (da ciência, da razão) que fez de Adão e Eva os pecadores ancestrais de toda a humanidade? Não tem sido a grande Razão que fez do mundo contemporâneo uma global jaula de ferro polivalentemente racional - Razão de Estado, Razão do Mercado, Razão Científica, Razão Midiática?

Que você acha? Tenho ou não tenho razão?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Deus resolve ...

Há muitas maneiras de descrever a fé em Deus. Assim também há muitas maneiras de descrever Deus. Muita vez Deus fica do tamanho da fé individual. Muita vez Deus é descrito com "D" mas não passa de um deus com "d". Difícil, complicado é saber distinguir uma descrição de outra, distinguir entre Deus e deus ...

Na Bíblia, em muitos trechos, essa distinção é feita através do uso do termo ídolo. Ídolos são deuses com "d" minúsculo. Em um momento de grande inspiração, um profeta judeu desconhecido descreveu os ídolos como produtos humanos, fabricados por mãos humanas (Isaías 44:9-20). Se esse profeta tivesse vivido no século XX, teria sido acusado de materialista, marxista, comunista ... Seja ela (por que não uma profetisa?) materialista ou não, ofereceu um importante critério para sabermos quem é deus com "d" minúsculo. Deus vira (d)eus quando ele é criado à imagem e semelhança da pessoa crente. Quando Deus fica do meu tamanho, ele foi transformado em (d)eus.

Lembro-me de alguns deuses com "d" minúsculo e vou mencionar um desses: o deus que resolve todos os problemas da gente. Ídolo? "Não!" muita gente dirá. Esse é o Deus de Verdade (tudo com inicial maiúscula!). O que faz de Deus Deus é o Seu poder. "Deus não manda recado, Ele faz!". Quando o ser humano não tem mais poder, não consegue mais resolver, então é hora de acreditar em Deus, pois Deus resolve.

O deus que resolve parece ser um (D)eus mesmo. Ele tem poder sobre-humano, capacidade transcendental, inteligência sobrenatural. "Tem de ser Deus!" Afinal de contas, não é assim que tradições cristãs têm descrito Deus há muito tempo: Onipotente, Onipresente, Onisciente, Eterno, Imortal? Parece, então, que Deus é exatamente o contrário da gente - ele é mais parecido com os ricos e poderosos do que com as pessoas comuns. Esse deus tem a cara dos nossos sonhos mais ocultos de grandeza (afinal de contas, sonhar "grande" não é muito correto. Pelo menos quem já ficou rico e quem manda pensa assim...). Não é à toa que quando a gente tenta achar um exemplo para falar de (D)eus a gente pensa em reis, em pessoas poderosas, em gente melhor do que a gente - em uma palavra: ídolos.

Bem. Eu penso o contrário. Esse (D)eus não passa de um (d)eus, um ídolo, uma projeção de nossas frustrações e delírios (diriam Feuerbach e Cia. Ltda.). Por quê? Porque quando a Bíblia resolve dar um exemplo visível de como é Deus, esse exemplo é Jesus. Filho de trabalhadores, cuja mãe não tem lá uma reputação das melhores, nazareno (para os Judeus fiéis os nazarenos eram religiosamente inferiores), amigo de pecadores e pecadoras, festeiro (o primeiro milagre de Jesus, no Evangelho de João, foi transformar água em vinho - veja bem: água em vinho, não "vinho em água!"), o Rei dos Reis que morreu em uma cruz a morte dos criminosos políticos, dos subversivos - dos "materialistas"...

Deus resolve? Um colega de Jesus na cruz matou a charada: "Não és tu o Cristo? salva-te a ti mesmo e a nós também" (Lucas 23:39). Ele acreditava em (d)eus. Mas Jesus não. Jesus acreditava em (D)eus. Por isso, não se salvou. O Filho morreu. Deus não "resolveu".

terça-feira, 11 de maio de 2010

A seleção do Dunga e a vida cristã

Não! Não vou explicar quem faltou, quem não deveria ter ido, etc. Quero aproveitar a entrevista do Dunga e a falação nacional sobre o tema para tratar de um texto bíblico: "Não sabeis que aqueles que correm no estádio, correm todos, mas um só ganha o prêmio? Correi, portanto, de maneira a consegui-lo. Os atletas se abstêm de tudo; eles, para ganharem uma coroa perecível; nós, porém, para ganharmos uma coroa imperecível..." (I Coríntios 9,24-27).

Pelo menos dois futebolistas se desconvocaram da seleção - Ronaldinho Gaúcho e Adriano (sem contar o Ronaldo Fenômeno, carta fora do baralho há mais tempo). Por quê? Por que deixaram de ser atletas, se ocuparam em "aproveitar a vida" inutilmente, se gastando em noitadas, baladas, bebidas, mulheres, etc. Uma visão muito frágil da vida, pseudo-hedonista, confundindo liberdade com falta de auto-controle, confundindo juventude com estupidez.

Na vida cristã e na vida, em geral, disciplina é fundamental. Não a disciplina militar, autoritária, mas o auto-controle que é fruto do Espírito na vida das pessoas (Gálatas 5,23). A sociedade consumista transmite uma mensagem estúpida para adolescentes e jovens: "divirtam-se", "aproveitem a vida", "aproveite enquanto é jovem"... Quem não tem domínio próprio, gasta a vida inteira na juventude e não aproveita nem a juventude nem a idade madura, nem a velhice.

Liberdade é autonomia, sim, mas principalmente, liberdade é o auto-domínio, é não se deixar aprisionar pelos próprios desejos (não importa se bons ou ruins), é ser criativo, viver de cabeça erguida em direção ao futuro que criamos livre e sabiamente. Liberdade é amar ao próximo como amamos a nós mesmos, pois assim não seremos dominados pelo próximo cuja demanda de amor pode ser opressora, nem seremos dominados por nós mesmos, pois nossas auto-demandas são aterradoras. Liberdade é ter um alvo sabiamente estabelecido, imanentemente transcendente, que nos desafia dia após dia à excelência,à auto-transcendência, à rejeição radical da mediocridde que paira em nosso dia-a-dia brasileiro contemporâneo.

Na cultura brasileira, a noção de disciplina é mal vista. Precisamos resgatá-la da idéia autoritária, moralizante, institucional de subserviência a algo, alguém, ou a alguma instituição. Por isso, não concordo com o apelo dunguiano e jorginhiano ao "patriotismo". Prefiro Caetano: "mas eu não tenho pátria, eu tenho mátria e quero frátria".

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Compaixão e solidariedade na proclamação do Evangelho

Quando a igreja se torna um bom negócio, ela pode manter o adjetivo "cristã", mas sua prática é pouco coerente com o adjetivo. Nos negócios, o que interessa é lucrar, fazer o outro perder, sem dó, sem solidariedade. Por isso, igrejas empresariais são monstrengos marqueteiros que reduzem o Evangelho de Jesus a um pacote de bens de consumo descartáveis. Só o que interessa é transformar fiéis em clientes e você sabe como é, clientes são apenas cifras para estatísticas e balanços, não existem enquanto pessoas.

Precisamos de compaixão e solidariedade para proclamar o Evangelho! Ao olhar para as pessoas e para as multidões de seus dias, Jesus as via como “ovelhas sem pastor” e demonstrava-lhes compaixão. A compaixão (solidariedade) era o motor de suas ações a favor das pessoas (v. Mt 9,36; 14,14; 15,32; 20,34; Mc 6,34; 8,2; Lc 7,13, etc.). Jesus demonstrava, através de seus atos, a compaixão de Deus pelos seus filhos e filhas escravizados ao pecado; demonstrava a solidariedade do Deus encarnado para com a humanidade pecadora (cf. Hb 2,14-17; 4,15-16). Para pregar o Evangelho não posso ver o “outro” como adversário – a evangelização não pode gerar inimigos, mas, sim, pessoas reconciliadas com Deus e, conseqüentemente conosco e com elas mesmas, amigos e amigas de Jesus Cristo (Jo 15,14-15).

Para pregarmos o Evangelho precisamos resistir à tendência desumanizadora e brutalizante de nossa sociedade; precisamos resistir à tentação de vivermos apenas em função de nós mesmos e de nossos interesses e desejos. Precisamos de solidariedade, compaixão: sentir o sofrimento do outro, como o nosso próprio sofrimento. Se somos amigos e amigas de Cristo, fazemos o que Ele manda. E o que Ele manda? “Eu vos escolhi para irdes produzir frutos e para que o vosso fruto permaneça ... O que eu vos ordeno é que vos ameis uns aos outros” (Jo 15,16-17). A Igreja existe para anunciar o Evangelho – essa é a grande comissão de Jesus (Mt 28,18-20 e paralelos), e esse é o poder do Espírito (At 1,8) – e se ela não o faz, deixa de ser povo de Deus, e se identifica com o mundo; torna-se sal sem sabor, não prestando para nada.

Jesus nos chama para que tenhamos compaixão de todas as pessoas; para que anunciemos o seu Evangelho, que é a boa notícia de que Deus pode mudar a vida das pessoas, para que de consumistas se tornem ativistas da paixão solidária. Mas para fazer isso, não dá pra ser igreja marqueteira, nem mega-igreja, nem igreja da prosperidade!

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Conflitos Passionais - Relendo Gênesis 1-11

Nesta semana a Faculdade Unida está recebendo Milton Schwantes para palestras e aulas na pós-graduação. Para quem não o conhece, Milton é um dos pioneiros da exegese tipicamente latino-americana, junto com Carlos Mesters, José Severino Croatto, Ana Flora Anderson, etc. Em uma das palestras ele tratou de Gn 1-11 sob a perspectiva político-econômica. Em "reação" à sua fala, abordei Gn 1-11 sob a perspectiva das paixões (afetos, emoções). Caso vc não se lembre, Gn 1-11 é um conjunto de textos que fala das origens - criação do mundo (1-2), pecado (3) civilização (4-5), dilúvio (6-9), nações (10) e povos semitas (11).

Há dois pares de paixões que tematicamente perpassam esse bloco de Gn 1-11. Um deles é o par das paixões da dominação, do Império, da injustiça: arrogância e crueldade. A pessoa arrogante é aquela que se considera mais do que realmente é e, simultaneamente, considera os outros como menos do que realmente são. Por isso, ela se arroga ao direito de mandar, dominar, derrotar, conquistar... A arrogância, comumente, é acompanhada pela crueldade, a paixão que pode ser descrita como aquela que leva a pessoa a tratar maldosamente outras, com violência, humilhando, menosprezando, maltratando outras pessoas ou seres não-humanos (a gente vê a crueldade nas criancinhas, por exemplo, nos momentos de prazer que elas têm em destruir coisas...). Quando Gn 6 descreve o pecado humano que estava na base do dilúvio, os termos hebraicos todos giram ao redor da crueldade e arrogância. Quando Gn 9, após o dilúvio, quer mostrar que o ser humano é, enquanto humano, pecador, descreve Noé (o justo "salvador" da humanidade) bêbado, amaldiçoando um de seus filhos - o arrogante pai foi cruel para com seu filho, só porque o rapaz viu o pai pelado. Que Deus aceite conviver e prometa não mais destruir essa humanidade "pecadora" mostra o amor de YHWH, ou o que, no Cristianismo costumamos chamar de graça de Deus.

O outro par de paixões é antagônico ao primeiro. São as paixões que mostram a semelhança entre o ser humano e o Criador, são as paixões da "imagem de Deus", usando um termo do próprio Gn. São as paixões da criatividade e do cuidado. A criatividade é a paixão que nos leva a criar idéias, valores, objetos, relações, etc. É a paixão da não-preguiça, do não-acomodamento, a paixão da auto-transcendência, que está muito ligada ao amor, pois criar também é criar novas vidas na relação amorosa. Criatividade é, também, a paixão da não-arrogância, pois a pessoa criativa normalmente sabe que não é completa, perfeita, que ainda precisa se auto-transcender, de modo que não consegue pensar de si como mais do que realmente é. O cuidado é a paixão do tratar bem ao próximo, de fazer bem aos outros. É o contrário da crueldade. Quem cuida protege a vida, protege o sonho, o desejo, o bem-estar do outro. Cuidado é a paixão da auto-doação ao próximo.

Gn 1-11 tenta ensinar que esse par de paixões duplas-antagônicas está presente em cada pessoa e em cada realização humana. A nossa responsabilidade é restringir a arrogância-crueldade mediante a valorização da criatividade-cuidado, "cuidando" que nossa criatividade não seja arrogante e nosso cuidado não seja cruel. Pena que algumas religiões e filosofias pensem que se pode restringir a arrogância-crueldade apenas com boas doutrinas ou boas idéias ...

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Religião e Eleição - de novo?

Noticiado em vários jornais, a partir da reportagem de um jornalista da Folha: prefeitura de Camboriú e governo do estado de SC, segundo o jornalista, patrocinaram evento evangélico (Gideões e/ou Assembléia de Deus) com mais de 500 mil reais (valor corrigido!), em apoio ao candidato José Serra.(http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u729314.shtml).

Já começou ... É claro que os representantes dos governos citados negaram a acusação. É claro que o TRE de SC terá de averiguar o caso - assim como o TRE-SP terá de averiguar se houve propaganda eleitoral ilegal no evento de Primeiro de Maio com Lula e Dilma. É claro que fé e eleições não têm nada a ver uma com a outra. É claro que Estado e Igreja estão devidamente separados.

Tudo tão claro. A instituição religiosa nas sociedades contemporâneas é uma fonte indispensável de votos. Especialmente os chamados "evangélicos" tão fáceis de serem manipulados por seus líderes. A aceitação do carisma da liderança é algo tão forte em meios "evangélicos" que a inteligência política e a responsabilidade sócio-cultural desaparecem.

O episódio de SC é apenas o primeiro de muitos, infelizmente. As igrejas continuarão a servir de palanque eleitoreiro, pois líderes supostamente "religiosos", auto-proclamados "pastores do rebanho de Deus" são, apenas, pastores de si mesmos. A esses líderes se dirige a velha, mas cada vez mais nova e pertinente, palavra crítica de Ezequiel 34:1-10 que assim conclui: "Assim diz o Senhor Iahweh: Eis-me contra os pastores. Das suas mãos requererei prestação de contas a respeito do rebanho e os impedirei de apascentar meu rebanho. Deste modo os pastores não tornarão a apascentar-se a si mesmos. Livrarei minhas ovelhas da sua boca e não continuarão a servir-lhes de presa" (Bíblia de Jerusalém).

Igrejas deveriam ajudar seus membros a serem melhores cidadãos e cidadãs - mais conscientes, mais responsáveis, mais participantes ...